Floresta de
Sobressalto
«Não havia descanso no difícil ensejo de escapar. Mas, um pensamento
surgiu, singular, a lembrar-lhe o crucifixo de madeira! Porém, alheou-se
rapidamente da ideia, ao escutar por perto o silvo de um apetrecho, que rompia
o ar, na sua direcção. Esquivou-se ao acaso. Lucus relinchou de esforço
e de dor. A nova investida, Bernardo respondeu de imediato. Tentou apoderar-se
da arma uma e outra vez. Em vão. À sua direita, era, então, mais notória, a presença
de outros cavaleiros. Escapou-se de um ramo, desviou-se de arbustos, evitou um calhau.
Protegeu-se da chuva, puxando a capa para o rosto. Não sossegou. Segurando-se a
Lucus
com todas as suas forças, espevitou-o até à exaustão, sentindo o esforço do
animal. Subitamente, sentiu o crucifixo balançar no seu peito, animando-lhe a
memória. Pegou nele de imediato e puxou-o para si, fazendo-o soltar-se do fio.
Olhou de soslaio, ergueu o braço e arremessou-o com ganas na direcção dos perseguidores...
Pareceu eterno aquele momento suspenso e, no instante
seguinte, após uma explosão, uma aura de energia com impressionante ardência
envolveu e asfixiou tudo em seu redor. As coisas perderam forma, imiscuindo-se
num espaço indistinto. Sem saber onde estava, Bernardo, mesmo cego de esforço, revoluteou
a montada ao encontro dos oponentes. O alarde da refrega tornou-se confuso. De
forma lenta, mas precisa, o monge levou a mão à espada. O tempo abrandara, o
espaço parecia exíguo, tudo se envolvia num sono sem sonho que tardava em
passar. Apenas o olhar de Bernardo, louco de temor e pleno de fúria, se cravara
em todas as direcções, procurando pontos de referência. Tudo à volta era
confuso e baço. Um vazio sagrado abafara as presenças demoníacas que,
imperceptíveis, soltaram queixumes de agonia, parecendo afastar-se precipitadamente.
Longe, os espectros desapareciam num declive. Pouco depois, a chuva regressaria,
impiedosa e torrencial.
Bernardo recuperou lentamente a serenidade, tentando perceber
o quê ou quem o havia provocado com tanto fulgor e de forma tão singular e, talvez,
fantástica. Ao guardar a espada, perguntou-se de onde viriam as faúlhas que o
haviam perseguido durante o frenético galope e se não teria visto qualquer
objecto metálico por perto... Indagou-se, mas não teve resposta. Voltou a
cobrir o corpo com a capa, protegendo-o da tempestade, ao mesmo tempo que
levava a mão ao peito, tentando inquirir a alma, qual guia místico. Mas não
obteve qualquer resposta nem indício inteligível. Ainda duvidava da realidade.
Tentou reconhecer um ínfimo pormenor, que denunciasse os infernais agressores, mas
não recordava mais do que silhuetas fluidas e mórbidas. Porém, que semelhança
assustadora com a sua própria imagem. Inquietava-se. Porquê figuras tão
obscuras e sinistras? Porque não vira o cintilar de uma lâmina?, perguntava-se.
Tocou no seu corpo. Não tinha
feridas, mas faltava-lhe algo no peito. O medalhão, a dádiva de Henrique, tinha
desaparecido. Contudo, o crucifixo, ofertado por Orlando, havia cumprido a sua
missão. O seu efeito, porém, apenas seria verificado, quando Bernardo, ao
tentar orientar-se, fez Lucus recuar e deparou com três
cadáveres, meio ocultos por arbustos, perto de uma vala. Com um misto de
espanto e horror, descortinou os corpos despedaçados, mercê da deflagração
provocada pelo objecto que lhes havia arremessado. Percebeu então que o risco que
correra tinha sido real. Apesar de se assemelharem a sombras ou espectros, os
agressores eram, na verdade, homens de carne e osso. Se, antes, a fúria dos
elementos lhe havia sugerido estar sob um prenúncio espiritual, agora, perante
aquele testemunho, sabia que o ódio profano dos homens também lhe enredava o
destino». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale,
O Monge Negro, 1060-1089, Publicações Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.
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