A Inauguração
«O Teles dera ordem para fechar o café só às dez horas da noite e o
senhor Batista era fielmente intratável, baixo e reforçado, de grandes bigodes
retorcidos. Vamos ficar aqui a noite toda, e não é certo!... Ah, amanhã às sete
tem que estar tudo em ordem, para a limpeza! Era mesmo uma ameaça, e Pacheco
não podia admiti-lo: O senhor Batista não sabe quem eu sou… O Batista não sabia
nem queria saber: eram ordens e o senhor Teles não era para brincadeiras. Para
ele, Batista, aquilo dos quadros era então isso, uma brincadeira? O sentido das
suas palavras não era esse, a questão era só idiomática, mas Pacheco espumava,
lívido: Eu não estou para isto! Sentou-se a uma mesa e o João Franco tentou
acalmá-lo: Não beba mais café, senhor Pacheco. Ele ia telefonar para o
escritório, ao senhor Teles. Lá isso pode telefonar, mas olhe que é pior... O
homem do café a pataco!... Berrou Pacheco, com a sua voz esganiçada, mas
engasgou-se e desatou a tossir, de dentro do peito. A sua magreza, o nariz agudo,
a sair das faces cavadas, de barba rapada, e dos olhos encovados, ainda fazia
mais impressão, vista nos espelhos. Eu tenho estado tão doente… Disse ele, num
queixume, apoiando os cotovelos na mesa. Os espelhos, os espelhos, que não
conseguira evitar…
É mesmo às dez horas, lá isso!... O gerente virou as costas e foi-se
embora, dizendo duas palavras ao João Franco que encolheu os ombros, com a sua
filosofia. Você conhece-os melhor do que eu… O plural era para eles todos, os
seis ou sete pintores aqueles quadros. Ainda o das lavadeiras... Estavam
guardados na Sociedade, na Barata Salgueiro, e o Batista fora vê-los só para ter
uma ideia do trabalho de os pendurar. Escadotes, eram precisos três, e ao lado
do relógio, como era? E, todo o cuidado com os espelhos era pouco: um
dinheirão...
O arquitecto tinha vindo vê-los, a pedido do Teles, e é claro que não
achou bem: ele tinha sido sempre contra aquela ideia dos quadros, pusera lá os
espelhos para alargar o espaço estreito da Loja, e chegava. Quem é que ia ver
os quadros, lá em cima? Perguntara-lhe o cliente. Norte Júnior abanou a cabeça,
com delicadeza, deixando correr os seus óculos de aro fino de metal e o seu
cuidado bigode, de caracol. O Pacheco tinha trabalhado no seu atelier, era muito hábil mas não tinha
juízo; dizia-se arquitecto, enfim... E com k!
Mas a ideia, para, ele, era o Alberto de Sousa, de que os jornais tinham
falado, a princípio.
E o Soares e o Barradas, que tinham talento, mas aquele Almada, não podia com ele. Ainda
tentara demover o Pacheco: Vê lá em que te metes… Enfim, tinha havido um
movimento favorável, e depois da questão das Belas Artes, era melhor não os ter
contra. E os jornalistas, o Araújo, o Falcão, mesmo o Matos Sequeira
concordava. Olha não... E ria-se discretamente, homem de boa educação e de
Sintra.
José chegara pelas três horas, com o Dr. Nazaré, distante e irónico. Está
Você a ver? Olhou em volta, rapidamente: queria os seus dois quadros lado a lado,
como tinham estado no Salão. Pacheco voltara, mais animado, e estava de acordo:
havia quatro pares, era pôr dois de cada lado, e ele próprio e o Stuart faziam
a separação, frente a frente. Que o do Stuart era muito mau: aquele moinho... O
Stuart nunca tinha visto um moinho na vida! Mas o José queria os Soares
defronte, e ele à direita, logo à entrada. Era a sua escolha. Pois, concordava
Pacheco, mas o outro era capaz de não querer... José riu-se, escarninho: era
melhor que fosse para a Garrett… O Barradinhas apareceu sorridente, pelo
meio-dia: ele estava sempre de acordo... Tu, também... Irritavam-se os amigos.
O Viana tinha ido para Paris, outra vez: podiam arrumá-lo onde quisessem,
consolava-se o Pacheco.
Mas só à noite é que podiam trabalhar, nada a fazer com o Teles e o
Batista. Ele tinha apalavrado uma camioneta para trazer os quadros, à tarde, e
tinha que descomandar, e os galegos da ilha também. O melhor, o menos bronco,
era o Domingos, na verdade Domingo, ele é que escolhera os outros dois. Eu
prego, eu prego... Dizia ele, mas José era mais ágil para subir os escadotes.
São leves, de tela, dizia o Pacheco. As telas do Teles... Riu-se o Barradas.
João Franco rondava: Ó senhor Pacheco, olhe que o Domingo… Ele lá sabia: àquela
hora da noite eles já estavam bebidos, e não faziam coisa com coisa. E então se
o senhor Stuart se mete... Esta só a mim!... Queixava-se Pacheco, enquanto José
dava grandes passadas na coxia: o café, àquela hora, estava quase deserto, com
gente que passava e não ficava: os outros chegavam mais tarde». In José
Augusto França, José e os Outros, Almada e Pessoa, Romance dos Anos 20, Editorial
Presença, Lisboa, 2006, ISBN 972-23-3546-4.
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