sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O Príncipe. Nicolau Maquiavel. Introdução de José Barreiros. «Descobri que para ler este pequeno livro e entender a complexidade que se esconde por detrás da sua vulgar linguagem importaria conhecer o seu autor, retirá-lo do imaginário colectivo…»

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Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«Encerro este texto de apresentação na véspera de terminarem os cinquenta e oito anos da minha vida, a idade com que morreu Niccolò Machiavelli. E encerro-o lembrando um pensamento seu: numa cidade corrupta, as repúblicas não podem manter-se nem recriar-se. Por isso, ele terá escrito o Príncipe. Por causa disso, a História amaldiçoou-o, condenando-lhe o nome, como se através da desconsideração pública lhe ferisse o coração da honra. Vejamos como.
Este exercício, porque trivial, é um começo necessário. Consulte-se um dicionário da língua portuguesa, uma enciclopédia, para maior alcance: Maquiavel deu origem, pelo menos no nosso léxico, ao substantivo maquiavelismo e ao adjectivo maquiavélico. É uma escalada que, começando com um nome de pessoa, termina num qualificativo de sentido pejorativo. Veja-se, por exemplo, a Enciclopédia Luso-Brasileira:
  • Maquiavelice, acção ou dito maquiavélico; astúcia, ronha, manha, ardil. Maquiavelismo, sistema político que assenta na astúcia, na perfídia e que foi exposto por Maquiavel.
NOTA: A Enciclopédia consigna mesmo a forma verbal maquiavelizar, ilustrando a ideia. O Dicionário de Moraes regista o mesmo sentido. O editado em 2001 pela Academia das Ciências de Lisboa diz que o maquiavelismo é o comportamento político desleal, desprovido de boa-fé ou o comportamento do que tem falta de escrúpulos, do que ludibria e prejudica, para conseguir o seu objectivo.

Só a um homem de excepção sucede um tal azar. A causa disso foi um livro que ele nunca chegou a publicar, editado em 1532, sete anos após a sua morte, precisamente este livro escrito por quem sofreu a malignidade da Fortuna, como ele descreveu a fatalidade do seu percurso. Esta apresentação é a narrativa de uma tragédia existencial, O Príncipe visto como um produto de amargura, de grandeza agónica, de desespero, mas também, nas sucessivas interpretações que concitou, um espelho das doridas contradições sociais, políticas e religiosas dos vários séculos de História durante os quais a obra sobreviveu até chegar, como um clássico, aos nossos dias. Tudo convergiu para que o acaso não pudesse gerar diferente destino. A verdade do escrito é a do efeito que produziu.
Descobri que para ler este pequeno livro e entender a complexidade que se esconde por detrás da sua vulgar linguagem importaria conhecer o seu autor, retirá-lo do imaginário colectivo, que ora o transformou numa espécie de cortesão alcoviteiro de tiranos, com eles partilhando os arminhos do poder, ora em republicano desprezado pela República, amigo do povo e dele seu discreto defensor, e ir buscá-lo ao momento de exílio, res perdita, sofrido o desemprego, sujeito à prisão e à tortura, o dia gasto em convívio com gente boçal, a noite esgotada em fantasias delirantes em companhia dos Antigos, a dura modéstia do quotidiano e a ânsia de obter qualche cose dos de Medici ou do papa, um de Medici também, algo que lhe devolvesse o sentido de utilidade e algum rendimento, como nos tempos idos em que era o secretário da Segunda Chancelaria da cidade de Florença.

NOTA: Duas notas interessantes. Primeira, para referir que o de, sempre minúsculo, é a abreviatura de dei, antes da consoante, e de degli, antes da vogal, para fazer referência à família de que se trate. Segunda, que, por falar em papas, os de Medici deram origem a três. O próprio papa Pio IV pretendeu ser membro da família, sem o ser!

Filho de advogado literato e por isso pobre, Nicolau Maquiavel, cultor das letras, pobre morreu também. Legou-nos, inédita, uma obra que é um sonho fantasioso de grandeza, tal como o estranho sonho que terá tido, segundo consta, antes de morrer». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução a partir do original de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de E. Presença/JDACT