Uma Viúva Apaixonada
«Logo a seguir à morte de Manuel I, a 13 de
Dezembro de 1521, a viúva, jovem
rainha D. Leonor, irmã de
Cados V, com a qual o Venturoso recentemente se casara em
terceiras núpcias, quis recolher ao convento de Odivelas, a fim de ali passar o
tempo de nojo. Seu enteado, João III, de vinte anos incompletos
que acabara de subir ao trono, dissuadiu-a desse passo, e ela deixou-se
persuadir mais facilmente do que a corte esperaria. A sua pronta anuência causou
até certa surpresa, se acaso não provocou algum sorriso malicioso aos
cronistas, sempre a farejarem romance, tal como os jornalistas de hoje a
espreitarem indiscretamente a vida dos príncipes de sangue ou do dinheiro. Parece
que viram na amável aquiescência da viuvinha mais um sintoma de tácito
entendimento entre ambos, que já vinham notando havia algum tempo.
D. Leonor foi então residir para, casa de Tristão
da Cunha, em Xabregas. E esta proximidade do paço real facilitava as visitas do
novo soberano à sua linda madrasta. E como era voz corrente, quer na corte,
quer entre o povo, que, mesmo em vida do rei Venturoso, tanto D. Leonor
como seu enteado, então ainda príncipe herdeiro, suspiravam de amor um pelo outro,
a Nação, longe de se escandalizar, começou a encarar a hipótese de que, arredado
pela viuvez o obstáculo que se erguia entre os dois apaixonados, se
consorciassem livremente, com vantagens imediatas para o reino e com feliz remate
para, aqueles amores contrariados.
Contrariados, sim, porque, anos antes, em 1518, D. Leonor estivera noiva de João.
O rei Manuel I pedira-a em casamento para aquele filho. Depois, ao ver o
retrato da jovem, sentira-se tão enfeitiçado que resolveu gulosamente fazê-la
sua mulher. Pouco lhe importou o escândalo que a sua decisão produziu. Para
justificar-se perante Castela, fez espalhar o boato naquela corte de que o
filho, o futuro rei de Portugal, não passava de um néscio, um mentecapto.
A jovem, que já se habituara à ideia de vir a casar com um rapaz de dezasseis
para dezassete anos, mal pôde disfarçar o seu desapontamento ao saber-se bruscamente
noiva de um viúvo de quarenta e nove, mas era demasiado fraca e obediente para
contrariar a vontade de seu irmão Carlos V, que preferia vê-la imediatamente rainha
do que apenas princesa.
Aquele casamento fora mais uma manifestação de egoísmo
do Venluroso.
Apesar de ser um dos monarcas de melhor sorte de toda a história de Portugal,
parecia nunca sentir-se inteiramente satisfeito. Queria tudo para ele; até a
noiva do filho cobiçou. Já não era a primeira vez que incorria neste pecado.
Muitos anos antes, quando ainda não sonhava chegar a ser rei, cobiçara ele a
noiva de seu primo Afonso, então príncipe herdeiro, filho de João II. Quis o
destino, sempre tão benévolo com este ambicioso, que seu primo morresse de
desastre, deixando viúva a mulher desejada, e que anos depois subisse ao trono e
pudesse vir a casar com essa jovem inconsolável. Pela primeira esposa teve de
esperar alguns anos que a boa sorte lha entregasse; por D. Leonor bastou-lhe
arredar do caminho o seu próprio filho e herdeiro.
Esta autêntica usurpação causou aos dois jovens,
que pela idade estava naturalmente indicados um para o outro, o maior
desapontamento. D. Leonor teve de aceitar, com aparente resignação, a troca de
noivos. Mas logo começou a cochichar-se na corte que madrasta e enteado se
amavam secreta e platonicamente. Parece não haver dúvidas de que o filho ficara
profundamente ressentido com a atitude do pai. Talvez a imaginação dos poetas,
aproveitando tão rico filão literário, transformasse esse simples ressentimento
em paixão dramática do enteado pela madrasta. Os factos posteriores vão, porém,
reduzir esse sublime sentimento às proporções de mero capricho de galã,
acirrado pelo interesse que sempre desperta o fruto proibido.
Vários indícios nos levam a admitir que D. Leonor,
ao conhecer pessoalmente o que primeiro lhe destinaram por noivo e que depois
teve de olhar como enteado, experimentou por ele viva simpatia. O infante João
também passara a ser para ela o fruto proibido e não é de estranhar que, por este
motivo, se lhe tornasse o mais desejado No entanto, erguia-se entre eles, com
todo o seu poder, um monstro de egoísmo que se chamava Manuel I». In Mário
Domingues, D. João III, o Homem e a Sua Época, Evocação Histórica, Livraria
Romano Torres, Lisboa, 1962.
Cortesia de Romano Torres/JDACT