«Viveu a senhora infanta entre artistas e teólogos.
Devota como seu irmão João III, não esqueceu nunca a filha do rei Manuel I, o Venturoso, os hábitos da corte do Paço
da Ribeira, onde nascera em 1521. Era
riquíssima. A sua vida de sempre menina decorreu, deslizou entre mesuras paçãs
e perfumes de incenso.
A pedra brasonada do antigo mosteiro da Encarnação,
invenção póstuma da sua piedade, está mesmo cortada em lisonja, como lhe competia,
princesa
sempre noiva, eleita de delfins, de duques, de filhos de imperadores. Diz-se
que foi amada por Camões, e que talvez lhe tivesse dado asas para o Poeta voar
a tão alto pensamento.
Era uma linda senhora, de nariz um tudo nada
imperfeito, o que lhe imprimia um ar de malícia excelsa, e lhe aumentava o
picante da expressão, misto de sensualidade e idealismo, como no desenho de
Chantilly, cópia de Gregório Lopes.
No seu testamento instituiu um convento para
religiosas beneditinas, que veio a ser o da Encarnação, da Ordem de S. Bento de
Avis, só erguido quarenta anos depois da sua morte. É um casario soturno, quase
misterioso, debruçado sobre o Rossio. Na sobreporta da igreja ostenta-se o
brasão daquele infantado virginal. Por todo o edifício, pelos claustros e
terraços, esconsos e escadarias, pejadas de oratórios, de altares, de mistérios
místicos, passa ainda, apesar de no mosteiro nunca ter vivido, o talhe esbelto
da Senhora Infanta, vestida com o hábito branco de S. Bento, ornado da cruz
verde de Avis, tal qual cai ainda hoje dos reposteiros moles.
No exterior, em pleno largo do Convento, uma
casinha setecentista de um pitoresco inverosímil, milagre de arquitectura
ingénua e popular, reúne-se à ostentação artística da igreja, repousada nos
seus azulejos, pinturas de bom pincel e lavores de prata.
Contíguo fica o palácio que foi dos condes de
Almada, e, ao alto, Santana, com a rua íngreme onde viveu Camões, e o Campo
eriçado de histórias de costumes lisboetas. A Encarnação é, assim, um dos
recantos de Lisboa, de penetrante estilete religioso e suave aroma palaciano». In
Norberto Araújo, Legendas de Lisboa, edições SPN, Lisboa, 1943.
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