I Fragmento
«Também o dia pouco consentia. Um no outro sorriram: tive saudades
tuas. Respondeu: e eu. E na verdade. não bem saudade mas presença sobre a pele
palpável. Ela sabe: amor tu sabes. É o que lhe dizes num silêncio no silêncio
que se fez nos olhos dela reflectido: amor tu sabes. Agora epetes muitas vezes
seguidas a meia voz tranquila. E ela reflectindo: amor sabemos se o tempo nos
consente. Porém que pés ecoam apressados
subindo essa insegura escada pisada sempre a medo? Que golpes são socados contra a já aberta porta?
Por que nós de dedos ansiosos foram
soados golpes? Por que entraste Regina? e contigo a notícia: Graça vem
a tua mãe morreu. Parece sem sentido. Ela o sabia e mesmo assim se erguia
diante dos olhos da outra sufocados saiu. Regina a seguiu fechando devagar a
porta sobre teu espanto deitado na tábua apodrecida. Nitidamente a viste em
breve entrando em casa atravessando o mudo átrio àquela hora vazio logo a
seguir à morte o irmão correndo ao seu encontro com lágrimas nos olhos ela abraçando-o
muito: por que choras se a mãe agora
já não sofre? por que choras
então senão por ti? Por egoísmo choras. Ele porém olhava-a sem a ver porque
desentendia. E isso a fazia perguntar-se: será que o amor renova realmente tudo em que toca e aceita iluminar? Será
que aquele corpo para lá da morte alguma coisa significa mais que aquele corpo
para sempre morto? Entrou no quarto sobre cuja cama a mãe jazia. As mãos enclavinhadas
sobre o peito. A cabeça suavemente voltada para o lado. Os lábios sem expressão.
Os olhos pálpebras. Ao canto a criada que conhecia a morte que a vestira lavara
amortalhara e vestira e lavara seus cinco filhos mortos como cumprindo um natural
destino a criada estava ajoelhada. E Graça a si se interrogava até quando recordaria
aquela voz e sentia que um verme lhe subia na garganta e queria asfixiá-la
levando-a a correr pelo corredor em direcção ao alugado quarto onde tu não
estarás onde unidos pelo sexo osso a osso no cerne outros desconhecidos casuais
amantes amarão mas onde ainda ficaste sentindo em tuas mãos o seu perfume dela
que te foge e temes que não volte. Ergues-te e partes.
Em baixo à entrada um homenzinho gordo e enfiado pede-te seco o
dinheiro que esquecias. A chuva não parava. Desde a esplanada em frente acena-te
Regina. Atravessas a praça sem olhar o trânsito e no café molhados os ombros e
a cara vais com Regina pelo braço para uma mesa ao canto. Nos vidros não se vê
a rua da chuva que os martela e se desfaz em espuma. Chega o criado magro. Pedes:
duas bicas um bagaço. Logo ela: dois dois bagaços. Depois ficam calados. Nenhum
se atreve a começar. As suas mãos nervosas tamborilam sobre o tampo de mármore.
És tu quem fala: repara a bátega parou vamos aproveitar para dar o fora: mas
para onde se ainda nem tomámos o café: não importa vamos que se amole: talvez para
minha casa: para qualquer lado que não este. Ela em voz alta ao criado: já não
bebemos os cafés nem os bagaços desculpe demorou de mais.
Na avenida baça correm carros rodas respingando luzes liquefeitos
reflexos nos vidros nos cromados. O céu fundo conserva laivos de azul-chumbo. Ela
propõe: vamos de taíxi. Vão de táxi e no táxi Regina começa uma confusa
conversa: o que o amor é é invenção quando uma vez amei ele não soube que o
amava nunca soube via-o vejo-o ainda hoje mas amava-o tanto desejava-o tanto
queria tanto dar-me que um dia me assaltou a ideia de estar grávida dele não
sei como mas dele sentia-me mesmo grávida com todos os sintomas quer dizer
engordei as regras demoraram e quando eu aguardava que voltassem não voltaram. À
porta do prédio pára o táxi. Entraram chamaste o elevador subiram ao oitavo sentaram-se
na sala. Acendeu um cigarro. O fósforo iluminou-lhe a ágil cara de curtos
cabelos negros cortados quase como os de um rapaz espessos sobre o pescoço
alto: tenho aí sandes cerveja uma garrafa de leite no frigorífico comemos aqui
em lugar de sairmos: eu não como em todo o caso acho que tu precisas: como
queiras volto num instantinho. Saiu pelo corredor do apertado apartamento onde
vivia com mais duas amigas que costumavam jantar na cantina ou em casa de
conhecidos ou família. Quando veio da cozinha com o tabuleiro cheio quis
continuar a conversa interrompida. Tu porém ligas o gravador e escolhes uns
poemas que Regina dissera. Em catadupa as palavras da fita saltaram. A voz dela
nitidíssima chega ao recitar a mensagem duma estranha e anónima e por isso mais
estranha balada escocesa do século dezasseis:
- andava eu sozinho a passear ouvi dois corvos a conversar e um perguntava ao seu par hoje onde havemos de ir jantar? Atrás dessa represa abandonada sei que um cavaleiro morto de fresco está e ninguém sabe que ele ali jaz excepto o seu falcão a sua bela esposa e o seu galgo. O galgo porém foi para a caça o falcão foi procurar aves selvagens a esposa arranjou outro homem já podemos assim ter um tranquilo jantar. Tu sentar-te-ás na sua testa alva deixas-me os olhos verdes para debicar juntos lhe arrancaremos os cabelos dourados forraremos o nosso ninho calvo. Muita gente em sua busca correrá onde ele foi ninguém saberá sobre os seus brancos ossos descarnados para sempre o vento soprará.
In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa,
1992, ISBN 972-21-0746-1.
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