domingo, 17 de fevereiro de 2013

O parecer de Mártens Ferrão. Crítica. Jornal do Comércio. 17 de Agosto de 1871. «Atingidos pela proibição, os setentistas censurados, nomeadamente Eça de Queirós, discutiram e analisaram o parecer de Mártens Ferrão. Mostramos que o Socialismo não é uma agitação superficial e subversiva, mas uma natural evolução histórica, fatal e justa»

Cortesia de wikipedia

A crítica dos setentistas ao parecer de Mártens Ferrão
O parecer de Mártens Ferrão foi criticado, v. g., pelo Jornal do Comércio, de 17 de Agosto de 1871.
  • Pasmámos do que lemos; jamais pensáramos que um funcionário, filho desta época, ousasse aceitar princípios que conduzem fatalmente à supressão da liberdade de manifestação do pensamento. In Jornal do Comércio, de 17 de Agosto de 1871, pg. 1;
  • Transcrevendo uma parte do parecer, a propósito das lutas gloriosas do catolicismocontra o islamismo, o jornal dizia que se sentia na obrigação de combater doutrinas tão erróneas e tão opostas ao espírito democrático.
Atingidos pela proibição, os setentistas censurados (nomeadamente Eça de Queirós) discutiram e analisaram o parecer de Mártens Ferrão. Antero de Quental refere, numa carta a Teófilo Braga:
  • temos feito uma análise ao parecer do Procurador da Corôa a respeito das Conferências, que tencionamos publicar colectivamente e assinada por todos. O escrito é grande e levaria muito tempo a tirar cópia.
Em detrimento dos aspectos jurídicos, era privilegiada a dimensão política do documento, que era significativo pelo que indica das tendências retrógradas dos nossos homens de Estado, e pela ignorância das verdadeiras questões modernas que acusa da parte deles. Contudo, este folheto nunca foi publicado. Encontra-se mencionado, sob a designação Análise do parecer do procurador geral da coroa, acerca da proibição das Conferências democráticas, (In memoriam de Antero de Quental, na secção dos Manuscritos destruídos).

NOTA: Mostramos que o Socialismo não é uma agitação superficial e subversiva, mas uma natural evolução histórica, fatal e justa, como a missão do Estado é não contrariar estas tendências espontâneas de uma sociedade que se renova; como os governos, que assim não obram, são incapazes e indignos de ser governo; como os homens de Estado e conselheiros da corôa, que votam pela perseguição, não só mostram essa incapacidade e ignorância flagrantes, como são verdadeiramente réus públicos por que provocam à luta de classes e à guerra civil. Terminamos declarando que não nos merecem consideração de espécie alguma os nossos grandes homens oficiais. In Carta de Antero de Quental a Teófilo Braga, s.d., 1871.

A influência de Mártens Ferrão em Eça de Queiroz
Para além das inimizades referidas que o parecer suscitou, em geral, nos setentistas, Mártens Ferrão veio a ter uma importante e quase ignorada intervenção indirecta na obra de Eça de Queiroz, em especial. Este conhecia anteriormente Ferrão.
Então com 21 anos, sendo certo que, durante toda a vida, ficou marcado pelo que Eça observou em Portugal durante os terríveis anos de 1867-1868, esteve em Évora entre fins de 1866 e Julho de 1867, altura em que Ferrão era Ministro do Governo da Fusão, circunstância de particular relevo, conforme se verá de uma caricatura de Eça, a respeito de um livro do Conselheiro Acácio. Eça referiu-se a Ferrão, em artigo publicado no Distrito de Évora: (...) muita teoria que em ciências sociais e de administração possui o sr. Mártens Ferrão, n.º 16, de 3 de Março de 1867. Que diferença de tempos e que marcha para o mal, para a pobreza, para a decadência, este país tem feito, desde Vasco da Gama e Manuel I até ao sr. Fontes e Ferrão e outros de aquilatada consideração, gente, na opinião do discreto redactor da Revolução, muito superior a Moisés e a Colombo, porque têm maiorias legais, coisa que aqueles desgraçados não alcançaram, um no Sinai e o outro no grande Oceano! Distrito de Évora, n.º 40, 26 de Maio de 1867,
Outra importante via de conhecimento foi a prestação de provas para cônsul. A instrução de Eça no concurso consular efectuou-se em 18 de Setembro de 1870, sendo admitido em 24 desse mês e prestado provas, juntamente com Jaime Batalha Reis, para cônsul de 1.ª classe, alguns dias depois, às dez horas da manhã, na sala do Corpo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, instalado então no Terreiro do Paço, paredes meias com a Alfândega.
Em 1 de Outubro, reuniu-se o júri, presidido pelo ministro interino dos Negócios Estrangeiros, Carlos Bento da Silva, que substituía interinamente o titular da pasta, marquês de Ávila e Bolama, e composto pelo procurador da Coroa, Mártens Ferrão, pelo juiz da Relação, Ferreira Novais, pelo director-geral das Contribuições, Gonçalves de Freitas, e pelo director-geral dos Consulados, Nogueira Soares.

NOTA: Fiz este estimável concurso, e parece que o grosso caderno de papel oficial que escrevi não julgado inteiramente inepto. Na verdade, Eça foi classificado em primeiro lugar, com um Muito bom. Apesar de Eça ter ficado em primeiro lugar, foi Saldanha da Gama quem foi ocupar o lugar aberto pelo concurso. Eça declarou-se vítima de perseguição política. Expressou o queixume numa farpa, devido às Conferências do Casino. Era bastante sintomático que um tal queixume público tivesse sido feito logo após a queda do governo do marquês de Ávila, e quando Andrade Corvo, um homem culto, ocupava a pasta dos Negócios Estrangeiros. O queixume público não se referia apenas à preterição que sofreu no preenchimento da vaga consular da Baía, mas também, e sobretudo, ao facto de, decorrido um ano sobre a sua aprovação no concurso consular, classificado em primeiro lugar, não ter sido colocado em qualquer outro.
No entanto, não fui despachado, o que achei justo e galante. Justo porque o cavalheiro escolhido, que tinha uma classificação quase igual à minha, ainda que inferior, tinha longos serviços no ultramar, estabelecimentos na Baía, etc., estava em condições preferíveis e inatacáveis. Galante, porque segundo me foi revelado eu não fora despachado porque se quisera fazer a vontade a uma dama ilustre, despachando o meu companheiro. Como compreendem, fiquei contente, como na efusão de uma vitória! ergui a minha alma o escarlate pavilhão da alegria. Alguém me disse por essa ocasião com ar misterioso: a sua conferência!... Mas eu não acreditava. Porque, enfim, eu na minha conferência condenara a arte pela arte, o romantismo pelo romantismo, a arte sensual e idealista, e apresentara a ideia de uma restauração literária, pela arte moral, pelo realismo, pela arte experimental e racional. O quê! pensava eu, será por isto que os Srs. ministros me julgam um inimigo da ordem? Jocosamente acrescentava: Porque enfim se eu não posso ser cônsul por ter feito uma conferência se essa conferência foi a condenação do romantismo, segue-se que eu não posso ser cônsul por ter condenado o romantismo!! Ora realmente, eu não sabia que para ser cônsul era necessário ser romântico! Eu não vira entre as habilitações que o programa requeria esta: Certidão do regedor de que o concorrente recita todas as noites, ao luar, o Noivado do Sepulcro, do chorado Soares de Passos. Eu não sabia disto! Porque então também declaro à Secretaria dos Estrangeiros: perdeu os dois cônsules que melhor lhe podiam convir: Antony e Werther. Ah! agora vejo, infeliz realismo, que me obstruis uma carreira! Ai! para ser cônsul para Pernambuco, quem tivera o coração de Romeu! A farpa produziu efeito; passados apenas quatro meses sobre a sua publicação, em 16 de Março de 1872, Eça de Queiroz foi nomeado cônsul em Havana, nas Antilhas espanholas.

Eça viria a ser alvo de uma discriminação negativa no âmbito deste concurso, após as prelecções casinenses. O nome do Procurador da Coroa ficou esquecido no processo cultural das Conferências, e apagado depois. Contudo, não o ficou na lembrança de Eça. Tal como os demais setentistas, além de ter guardado na lembrança, o escritor terá recolhido, em cópia, o documento de Mártens Ferrão, e o discurso pronunciado em 5 de Setembro de 1871, impresso nas páginas do Diário do Governo e do Diario da Camara dos Senhores Deputados, ou mesmo no folheto em que o procurador geral da Coroa, em defesa das suas ideias. “O conjunto apetecível das ideias estava diante de Eça. Mais tarde, Eça serviu-se desses textos, em várias ocasiões.
Algumas outras passagens de discursos de Deputados, mas, sobretudo, em particular, algumas asserções do Procurador Geral, definidas no Parecer e, sobretudo, na longa intervenção, em estilo de lição, que proferiu na Câmara dos Deputados, em 5 de Setembro de 1871, foram reinterpretadas, reinventadas, glosadas, inseridas, velada e depuradamente, a breve trecho em várias personagens de Eça, nas cenas dos seus romances. Com efeito, as considerações ideológicas do texto de Mártens Ferrão, altamente significativas do pensamento oficial e conservador, puderam ser recuperadas e utilizadas com fins críticos, para além da discussão legal dos seus fundamentos, em termos de retrato social, por vias de ficção, por Eça.
A influência, patenteada em vários pontos de intersecção, transparece em várias personagens das suas obras, sobretudo no tipo social dos políticos, que encarnam as páginas do parecer de Mártens Ferrão em figuras caricaturais». In Ivo Miguel Barroso, As Conferências do Casino e o poder político. Anatomia do discurso proibitivo, Excerto do Relatório de Mestrado, FDUL, Wikipedia, 2003/2004.

Cortesia de FDUL/JDACT