terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O Confronto do Olhar. O Encontro dos Povos na Época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha e Luís Albuquerque. «As cartas destinadas à pilotagem decerto se iam “gastar” pelo uso que os pilotos delas faziam. Talvez seja um fragmento de um planisfério de Luís Teixeira, c. 1585, que está no Museu de Marinha de Lisboa»


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Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa
«Dos dois séculos considerados sobreviveram algumas dezenas de cartas de viárias oficinas de cartógrafos, e muitas delas, a dos Reinel e as do Homem, entre outras, provenientes de verdadeiras escolas familiares, como era entÍio ainda corrente entre os oficiais de uma determinada arte, no sentido grego da palavra. Na sua quase totalidade apresentam-se essas ciìrüas ricamente iluminadas, motivos muito variados: homens, animais, plantas, castelos, um ou outro templo, rosas-dos-ventos, navios.
As mais simples serão talvez as do atlas anexo ao Livro de Marinharia de João de Lisboa, anónimo e não datado, mas datável de meados do século; mas até essas têm os topónimos requintadamente escritos a vermelho e a castanho-escuro, ostentam grande número de bandeiras, representam convencionalmente algumas cidades em esbocos de bom recorte e têm todo o litoral pintado a azul. É claro que não eram cartas com estes acabamentos luxuosos que passavam às mãos dos pilotos; elas terão sido antes plepgadas para satisfazer o pedido de algum erudito endinheirado ou de algum nobre curioro, é caso do planisfério de Cantino e por isso o cartógrafo se esmerou nesses pormenores de belo efeito mas absolutamente desnecessários para a navegação. As cartas destinadas à pilotagem decerto se iam gastar quase sempre pelo uso que os pilotos delas faziam, sendo por isso presumível que muito poucas chegassem aos nossos dias; talvez a única nessas circunstâncias seja um fragmento de um planisfério de Luís Teixeira, c. 1585, que está no Museu de Marinha de Lisboa.
No entanto, do ponto de vista que nos interessa tomar ao redigir estas linhas, são exactamente as cartas sobreviventes as que mais nos interessam. O cartógrafo transpunha para o desenho por via de regra as informações recolhidas de pilotos e navegadores e esses dados são por isso de grande significado para se ter uma ideia de como alguns homens do mar desse tempo, e os viajantes embarcados em naus e caravelas por aqueles marcadas viam os novos mundos que se lhes deparavam, sabiam e pensavam a vida ou os costumes dos novos povos com que estabeleciam contactos, localizavam, e ès-vezes mal ou muito defeituosamente, cidades que por tradição se tinham tornado importantes, etc.

Nos relatos de viagens de vários tipos os autores têm uma tendência a compaginar o que vêem com o conhecido, ou, seja, com o europeu e, sobretudo, com o português. É assim que Álvaro Velho, suposto autor da Relação (e não diário) da primeira viagem de Vasco da Gama, compara Melinde a Alcochete; que Tomé Pires diz, de um povo Oriental, que usava escrita de números como a nossa, quando, afinal, nós é que a usávamos como eles!, e assim por diante. Quer dizer: nesses escritos procurava-se descortinar a semelhança do novamente visto com o visto ou conhecido. Na cartogfafia, os autores dos desenhos agem preferentemente ao contrário: é o novo, o imprevisto e até o insólito que de preferência assinalam. Isto é, enquanto nos relatos escritos os autores estão atentos às convergências, e por vezes apenas superficialmente apreendidas, como é o caso de a trindade do hinduísmõ ser tomada pela cristã, no caso da cartografia os autores de mapas iluminados prestam sobretudo atenção a confrontos ou a diferenças, embora às vezes com fantasia». In Luís de Albuquerque, Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.

Cortesia de Caminho/JDACT