terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Quando Éramos Órfãos. Kazuo Ishiguro. «O que estás a esconder na manga? Vamos, desembucha! Olha que tenho os meus métodos para te fazer falar! Mas eu não lhe revelei nada e passado pouco tempo consegui pô-lo de novo a discutir filosofia, poesia ou qualquer coisa desse género»



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Londres, 24 de Julho de 1930
«Foi no Verão de 1923, no Verão em que vim de Cambridge para cá, que, apesar dos desejos da minha tia de que regressasse ao Shropshire, decidi que o meu futuro estava na capital e arrendei um pequeno andar no número l4-B de Bedford Gardens, em Kensington. Recordo-o agora como o mais maravilhoso dos verões. Depois de passar anos rodeado de colegas, tanto na escola como em Cambridge, sentia grande prazer na minha própria companhia. Apreciava os jardins públicos de Londres, o sossego da Sala de Leitura do Museu Britânico e usufruía tardes inteiras a passear pelas ruas de Kensington, gizando planos para o meu futuro, parando de quando em quando para me extasiar com o facto de aqui em Inglaterra, mesmo no meio de uma cidade tão grande, se encontrarem trepadeiras e hera cobrindo as fachadas de belas casas.
Foi num desses vagarosos passeios que encontrei inteiramente por acaso um antigo amigo da escola, James Osbourne, e, ao descobrir que morava perto de mim, lhe sugeri que me visitasse quando passasse pela minha casa. Embora nessa altura ainda não tivesse recebido uma única visita nos meus aposentos, fiz o convite com confiança, pois escolhera-os com algum cuidado. A renda não era elevada, mas a minha senhoria mobilara a casa com um gosto reminiscente de um tranquilo passado vitoriano. A sala, que recebia sol com abundância durante a primeira metade do dia, continha um sofá com uns bons anos, assim como duas confortáveis poltronas, um aparador antigo e uma estante de carvalho cheia de enciclopédias em decomposição, tudo coisas que, estava convencido, mereceriam a aprovação de qualquer visitante. Além disso, quase imediatamente após ter alugado a casa, fora a Knightsbridge e comprara um serviço de chá Queen Anne, vários pacotes de bons chás e uma grande lata de biscoitos. Por isso, quando Osbourne apareceu uma manhã, poucos dias depois do nosso encontro, encontrava-me preparado para o servir com uma segurança que nem por um momento lhe permitiu supor que era o meu primeiro convidado.
Mais ou menos nos primeiros quinze minutos, Osbourne andou agitadamente pela minha sala, felicitando-me pelas instalações, examinando isto e aquilo, olhando de vez em quando pelas janelas e admirando-se com o que quer que se passava lá em baixo. Por fim deixou--se cair no sofá e pudemos trocar notícias, nossas e de antigos amigos da escola. Lembro-me de que passámos uns momentos a discutir as actividades dos sindicatos operários antes de nos embrenharmos num longo e agradável debate sobre filosofia germânica, que nos permitiu revelar mutuamente as façanhas intelectuais que cada um de nós realizara na sua universidade. Depois Osbourne levantou-se e recomeçou a andar de um lado para o outro, ao mesmo tempo que anunciava os seus vários planos para o futuro.
 - Sabes, estou com vontade de me dedicar à edição. Jornais, revistas, esse tipo de coisas. Na verdade, gostava de escrever pessoalmente uma coluna. Acerca de política, questões sociais. Isso, claro, se não decidir dedicar-me eu próprio à política. E tu, Banks, não tens realmente nenhuma ideia do que queres fazer? Repara, está tudo ai fora à nossa espera, apontou para a janela. - Tens com certeza alguns planos. - Suponho que sim - respondi, sorrindo. - Tenho uma ou duas coisas em mente. Dir-tas-ei em devido tempo. - O que estás a esconder na manga? Vamos, desembucha! Olha que tenho os meus métodos para te fazer falar!
Mas eu não lhe revelei nada e passado pouco tempo consegui pô-lo de novo a discutir filosofia, poesia ou qualquer coisa desse género. Depois, cerca do meio-dia, Osbourne lembrou-se de súbito de que tinha um encontro para almoçar em Piccadilly e começou a pegar nas suas coisas. Só à porta, quando ia a sair, se voltou e disse: - Olha, meu velho, queria dizer-te uma coisa. Esta noite vou a uma festa. Em honra de Leonard Evershott. O magnata, como sabes. É um tio meu que a oferece. Bem sei que é um bocado em cima da hora, mas pensei que talvez quisesses aparecer. Estou a falar a sério. Há muito tempo que tencionava passar por cá, mas sabes como é, nunca calhou. É no Charingworth.
Como não respondi logo, deu um passo na minha direcção e acrescentou:
 - Pensei em ti porque me lembrei ... Lembrei-me de que estavas sempre a fazer-me perguntas acerca de eu ser bem relacionado. Oh, deixa-te de fitas! Não finjas que não te lembras! Costumavas interrogar-me implacavelmente. Bem relacionado? Que significa, ao certo, ser bem relacionado? Por isso pensei: aqui está uma oportunidade para o velho Banks ver com os seus olhos o que é ser-se bem relacionado. - Abanou a cabeça, como quem se lembra de alguma coisa, e acrescentou: - Meu Deus, eras um sujeito muito esquisito na escola». In Kazuo Ishiguro, When We Were Orphans, 2000, Quando Éramos Órfãos, Gradiva Publicações, Lisboa, 2000, ISBN 972-662-761-3.

Cortesia Gradiva/JDACT