(Continuação)
Contra os Economistas
«Que coração, de homem ou de sociedade, sobreviverá alimentando-se, não
do desmesurado sangue dos sonhos, mas de programas e de projectos? Com o fito
de receber o prémio do sucesso, intrigante e inquietante palavra! Muitos de nós
procuraram, viva ou morta, a infância dentro de si e entregaram-na, amarrada de
pés e mãos, aos carrascos. E pior: vista daqui, parece que a própria sociedade,
no seu conjunto, fez o mesmo. A alma dos povos, como a alma dos homens, precisa
de horizontes largos e irrealizáveis, e nos últimos tempos a nossa alma colectiva
foi metodicamente aprisionada nos limites da Balança de Pagamentos e
de um montão de siglas sonoras e indecifráveis, e corrompida pelo comércio e
pela usura. Como no Admirável Mundo Novo de Huxley, palavras como solidariedade e igualdade caíram em
desuso e tornaram-se obsoletas e desprezíveis; e mesmo ideias imensas como a de
liberdade
foram reduzidas às dimensões mesquinhas
do mercado. A grandeza, para, os liberais profetas do sucesso, corresponde,
mais ou menos, ao volume da facturação
e dos resultados líquidos, e uma mecânica legião de economistas e de
gestores atarefa-se monocordicamente em convencer-nos de que a felicidade é a mesma coisa que taxas de
juro baixas. Todos os dias leio nos jornais barbaridades do género!.
Não que ache que os economistas são gente inútil; pelo contrário, são
talvez imprescindíveis. Cabe-lhes manusear as matérias mais porcas que as socie.dades
imemorialmente geram:
- o dinheiro e a usura.
Aflige-me é que possam, com as mãos sujas dos dejectos do corpo social,
aproximar-se da alma e do espírito das sociedades e contaminá-los com a sua
ciência e a sua linguagem de escravos.
Numa sociedade capaz, como todas as sociedades jovens e criadoras, de infância,
eles e o seu trabalho sujo têm certamente lugar; intolerável é que lhes
permitamos que usurpem o lugar dos poetas e dos guerreiros e
que os ostentem por aí, sem escândalo, nos discursos e na lapela». In Jornal
de Notícias, 29/1/92.
Sem Sombra de Pecado
A verdade é infelizmente esta: os
homem são bichos agressivos e maus. A cultura, ensinou Freud,
serve justamente, como outras instâncias sociais, para debilitar e desarmar
essa agressividade. Instalando uma consciência moral no interior dos homens como uma guarnição militar numa cidade conquistada,
a cultura mantém os seus instintos primários sob permanente e rigorosa
vigilância. Por isso a cultura faz os homens infelizes e culpados. Mas, desta
forma, a cultura é também condição
da existência e da sobrevivência da vida social. Sem valores culturais, sem
ideias, sem ideais, isto é, sem renúncia e sem angústia, uma sociedade não
passa de uma grotesca barbárie mais ou menos organizada.
Talvez o maior erro do marxismo tenha sido o seu optimismo, a sua
injustificada confiança na natureza humana, incluindo a natureza humana dos marxistas....
Mas, provavelmente, o pior crime dos liberais après la lettre, que por
aí agora andam é o do cinismo. Os bárbaros tomaram de assalto a cidadela:
- os relatórios das empresas, os projectos económicos, os programas dos partidos e dos governos ululam desvairadamente por agressividade e por competitividade; o lucro e o vampirismo social tornaram-se no desmedido motor do novo progresso, a iniciativa privada, numa feroz fortaleza fechada onde se desfazem os destroços das últimas instituições fundadas na solidariedade e na cultura. Já vi pateticamente defender, a seguir à privatização e sujeição à lógica do lucro das escolas, dos hospitais e por aí adiante, também a apropriação privada dos rios, dos mares, do próprio ar que respiramos!»
continua
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT