segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Conferência Pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900. Alexandre Herculano. Diogo Rosa Machado. «Feliz a intelligencia vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacille; sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça»

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«Não se deve estudar a vida de Herculano independentemente das suas obras, porque em todas se revela o fogo sagrado que o anima, a sua grande imaginação, a poderosa energia do seu temperamento, a rigidez do seu caracter, o seu ardente enthusiasmo por tudo quanto é nobre e bello, o seu amor da sciencia e da virtude, a sua paixão pela liberdade e a sua profunda abnegação; numa palavra, porque em todas as suas obras está vigorosamente estampado o seu nobre caracter e o seu grandioso espirito. A indole eminentemente poética e philosophica de Herculano revelou-se desde a infância; as impressões que se experimentam nos primeiros annos da vida têm grande analogia com as inclinações dos últimos annos: nas tendências infantis já se descobre o que se ha de vir a ser na edade de homem.
Pelos escriptos de Herculano conhecemos muitos factos da sua vida, narrados com a sinceridade que caracterizava o eminente escriptor. No Monge de Cister diz elle, referindo-se aos dias-santos dos seus tenros annos:
  • A tarde corria pela relva com os outros moços da minha edade, e travava luctas e gritava e ria e suava e tripudiava nos jogos e brinquedos, que são próprios d'aquella edade ; mas, quando o sol descia para o horizonte, ia assentar-me á sombra de uma grande nogueira, sósinho, a ouvir cair num tanque uma pequena bica d'agua, e alli ficava muito tempo a scismar. Em que? Eu sei lá! Em nada, provavelmente. Mas scismava e sentia levantar se-me no coração um fumosinho de tranquilla melancolia, fumosinho que se condensava brevemente nos olhos em lagrimas, que não chegavam a rolar, mas que nelles bailavam. E alli me achava a noite, e buscavam-me, e desfaziam-me o encanto, mas ficava-me cá a saudade...
Estas palavras eloquentes e repassadas da mais veemente poesia mostram-nos que já na sua infância Herculano revelava uma grande tendência para a solidão, um temperamento melancólico, um espirito assas meditabundo, um coração muito impressionavel, uma alma verdadeiramente poética, onde se começava a acender o amor da natureza. As suas tendências infantis não denunciariam já o grave e austero solitário de Valle de Lobos? Aquella creança prodigiosa, que se afastava dos seus companheiros para meditar, havia de ser mais tarde o vigoroso cantor da Semana Santa e da Arrábida, o sublime idealista do Eurico e o renovador dos estudos históricos em Portugal.
Para bem se avaliarem os escriptos e as opiniões de Herculano é mister que examinemos a sua educação. Não ha homem algum, por maior que seja o seu espirito, em quem a educação não exerça uma poderosa influencia; são profundos os vestígios que deixam no espirito os primeiros hábitos e idéas. Herculano era naturalmente religioso como a maior parte dos grandes poetas, mas a educação que recebeu contribuiu poderosamente para que no seu espirito ficassem profundamente gravadas as crenças christãs. Estas crenças foram certamente modificadas pelo espirito philosophico de que a natureza o dotara, mas, embora chegasse a combater com a maior energia os novos dogmas que Roma introduziu no catholicismo, nunca em seu espirito se extinguiu a religiosidade, nunca renegou um só dos princípios fundamentaes do verdadeiro christianismo.
Em toda a sua vida foi um crente sincero, um enthusiasta da moral evangélica, um espiritualista ardente. Era um velho catholico, um sectário intransigente da igreja primitiva. Foi considerado hereje por uma grande parte do clero, mas aquelle hereje era um verdadeiro christão, que não admittia innovações no catholicismo nem transigia com a Companhia de Jesus. A lucta que se travava no seu espirito entre a fé e o raciocínio, entre a religião e a philosophia, e que só pôde ser devidamente avaliada por aquellas almas apaixonadas que, depois de receberem uma educação eminentemente christã, se acham invadidas pelo verme roedor do scepticismo, essa lucta dolorosa em que se estorce a alma do crente illustrado está admiravelmente descripta no magnifico prologo do Parocho d'aldeia, onde se encontra o seguinte trecho, cuja sublimidade rivaliza com a dos mais bellos monumentos da poesia religiosa de todos os séculos:
  • Feliz a intelligencia vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacille; sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça! Para ella não ha abraçar-se com a cruz em impeto de agonia, e clamar a Jesus:
  • Creio, creio, oh Nazareno! Creio em ti, porque a tua moral é sublime; porque eras humilde e virtuoso; porque, filho da raça soffredora e austera chamada o povo, eras meu irmão, e não podias, tão bom, tão singelo, tão puro, enganar teu pobre irmão. Creio, creio, oh Nazareno! porque até á hora de expirar na ignominia, até á hora da grande prova, nunca desmentiste a tua doutrina. Creio, creio, oh Nazareno! porque tu só nos explicaste o mysterio d'esta associação monstruosa da saúde, do ouro, do poderio e dos crimes a um lado, e a da enfermidade, da pobreza, da servidão e da innocencia a outro; porque nos explicaste como os destinos humanos se compensavam além do sepulchro. Creio, creio, oh Nazareno! porque só tu soubeste revelar a consolação á extrema miséria sem horizonte, e os terrores á completa felicidade sem termo na vida collocando no logar do destino a Providencia, e no do nada a immortalidade! Creio, creio, oh Nazareno! porque a intensidade do teu viver é um impossível humano; a victoria da tua doutrina severa contra a philosophia e o paganismo, um milagre; a gloria do teu nome de suppliciado maior que todas as glorias das mais altas e virtuosas intelligencias do mundo. Mas foste na verdade um Deus?
In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.

Cortesia de L. Tavares Cardoso & Irmão/JDACT