«Alguns atiraram-se à água mesmo sem saber nadar, e outros fugiram que
nunca mais ninguém os viu. Os portugueses saíram vitoriosos, mas danados -
coisa que muito nos surpreende, já que tinham a obrigação de saber com quem se metiam
muito antes de se meterem, ora essa! Para espanto meu, conta Camões que o tal importante pediu as
pazes: mandou propostas, fingiu-se arrependido. E para provar a sua boa
vontade, enviou-lhes um piloto, é claro que com a intenção de trair os
portugueses e desfazer todos os seus sonhos.
Vem dos homens uma névoa,
tira-lhes toda a razão:
é a raiva que lhes voa
como uma ave sem chão.
Vasco da Gama aceita o piloto,
mas não aceita o que ele diz. Ainda bem, o tipo tinha ordens definidas, o que
queria era levá-los a uma outra ilha, de nome Quíloa, onde os mouros
eram mais poderosos e capazes de vencer estes portugueses e sua artilharia. - Bute , meus! O piloto insistia,
os barcos avançavam, o vento soprava, enfim, estiveram a uma unha negra, a uma
nesga, a dois palmitos de água de se meterem num grande sarilho. Os ventos começaram
de repente a mudar de rumo, viraram os barcos as suas proas, Vasco da Gama suspirou fundo, nem sabia
que era Vénus a interceder por ele. - Bute, meus! Mas estariam a salvo? Que ideia. Se estivessem a
salvo nem a história se contava, navegava, progredia.
- Meus, conheço aí uns bacanos
na segunda ilha à direita. Bute.
O que o piloto traidor queria era levar os portugueses para nova armadilha,
terrível ardil, tremenda arola. Dizia ele que conhecia uma cidade de cristãos,
onde os portugueses se sentiriam bem acompanhados. Ficava já ao virar da esquina,
mais onda menos onda. Foram direitos a Mombaça, só para ver se
era verdade. O rei de Mombaça, um importantão, manda-lhes um recadinho floreado,
todo cheio de falinhas mansas. - Fixe,
meus. Aqui 'tá tudo numa boa. - Bute lá. Vasco da Gama, que acreditava em tudo e em todos um bocado de mais cá para o
meu gosto, fica logo convencido. - Meus,
a coisa vai. Bute.
O coração a bulir
deixa-me só sem pensar:
não sei se hei-de sentir
se sinta o que sei amar.
Vasco da Gama escolheu dois
marinheiros para irem, antes de todos, a terra, a ver o que por lá havia: - Bute, vamos lá. O que lá havia
era uma tremenda trapaça. Baco, o malvado Baco, disfarçara-se de
padre, ajoelhara diante de uma cruz feita por ele, e rezava, tentando convencer
os portugueses de que estavam numa terra cristã. - Meus, assim é que é. Baril. Para que a coisa ficasse mais
composta, o rei de Mombaça mandou a Vasco da Gama uma quantidade enorme de presentes. Mas, no meio disto tudo,
alguém estava atento. Vénus, a enamorada deusa dos enamoramentos,
velava. Foi buscar umas primas, umas amigas, umas conhecidas, e umas outras que
nem sabia quem eram mas que serviam muito bem, juntou-as todas e escondeu-se
com elas na espuma das águas. - Bute,
vamos lá! Empurraram os barcos para longe, salvando os portugueses. Os
mouros ficaram aflitos, estes portugueses têm dons de adivinhação!
- Ai que cena, meus! Fogem os mouros, receosos, o piloto desleal
atira-se à água. - Bute, glup! - Bora!
Vasco da Gama livrou-se de boa e fica
aliviado, pudera! Vai para o espelho mirar-se:
- És mesmo anjolas, Vasquinho! Nem pareces um capitão, um herói, um fica na história na página maior.
Quem foi que teceu beleza
no pano cru da verdade?
Mesmo brava a Natureza
desconhece crueldade.
In Alexandre Honrado, Eu curto… Eu gosto dos Lusíadas, Negócio de Ócio,
Lisboa, 2002, ISBN 972-98888-0-9.
Cortesia de Negócio de Ócio/JDACT