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Maio
de 1756
«(…)
Quanto aos homens, usavam a máscara branca do fantasma, conhecida como larva, o
tricórnio, e a bauta que cobria o corpo; bem como a capa negra ou tabarro, para
os mais conservadores. Outros se apresentavam como personagens saídos de
contos, peças de teatro ou dos caprichos da imaginação: Tracagnin, Arlequim,
Pantaleão, o Doutor, Polichinelo, os habituais, os eternos; mas também como
Demónios armados de bexigas, mouros empoleirados em asnos ou cavalos-de-pau,
turcos fumando cachimbo, falsos oficiais franceses, alemães, espanhóis, sem
falar na horda de confeiteiros, limpadores de chaminés, floristas, carvoeiros,
mascastes... Charlatões, vendedores de poções prometendo a vida eterna ou a
volta do ser amado, mendigos, pedintes, camponeses sem tostão vindos da Terra
Ferma, cegos e paralíticos dos quais não se sabia se a enfermidade era real ou
falsa. Todos se espalhavam pela cidade. Os cafés e numerosas tendas montadas
para a ocasião exibiam cartazes convidando os curiosos a descobrir os monstros:
anões, gigantes, mulheres com três cabeças aos quais se misturava a multidão. O
momento chegara: aquele de todas as euforias, de todas as liberações, aquele em
que o plebeu podia se imaginar rei do mundo e a nobreza imitava a corja; em que
o universo, de repente, se punha de pernas para o ar, onde se invertiam e se
trocavam os papéis e onde todas as licenciosidades e excessos eram permitidos.
Gondoleiros em traje de gala conduziam os nobres pelos canais. A cidade se
enfeitava com inúmeros arcos do triunfo. Aqui e acolá se jogava pelota ou meneghella,
enquanto os passantes faziam apostas atirando moedas que tilintavam nos pratos
ou então as escondiam em sacos de farinha onde se mergulhava a mão, cada um
esperando recuperar as apostas com lucro. Vendedores expunham montanhas de fritos
nos balcões. Dos barcos, pescadores de Chioggia gritavam para a multidão. A mãe
dava uma palmada na filha, cujo pretendente abraçava um pouco apertado demais.
Vendedores de roupas usadas empurravam carrinhos de mão abarrotados, tentando
atrair possíveis fregueses dos barcos.
Nos campi,
marionetes de estopa arremessavam guloseimas e frutos secos. Um bando de frombolatori,
moleques mascarados, assombravam os sestieri, atirando ovos podres nos
trajes das belas e das velhas debruçadas nas sacadas das villas, antes de
fugir, às gargalhadas. Os jogos mais grotescos floresciam de um lado a outro
dos bairros de Veneza: um cachorro se balançava numa corda, homens subiam até ao
topo de paus-de-sebo para pegar um salsichão ou uma garrafinha de bebida;
outros mergulhavam em tinas de água salobra para tentar pegar uma enguia com os
dentes. Na Piazetta, uma máquina de madeira em forma de bolo cremoso tentava os
gulosos; ajuntamentos formavam-se em torno dos malabaristas, das cenas de
comédia improvisadas, dos teatros de marionetes. De pé sobre tamboretes, astrónomos
de araque, os indicadores levantados em direcção a estrelas invisíveis,
anunciavam o Apocalipse. Gritava-se de espanto, gargalhava-se, ria-se muito ao
derrubar sorvete ou bolo nas calçadas, gozava-se da alegria e da doçura de
viver.
Saiu,
então, das sombras, aquela conhecida como Dama de Copas. Escondida até
então sob as arcadas, deu alguns passos hesitantes abrindo o leque. Os longos
cílios se curvaram por trás da máscara. Os lábios vermelhos se arredondaram. Deixou
cair o lenço aos pés ao ajeitar uma prega do vestido. Abaixou-se para pegá-lo e
lançou um olhar a outro agente postado mais adiante, na esquina da Piazetta,
para se certificar de que ele havia compreendido. E esse gesto queria dizer:
ele está aqui. De facto ele estava lá, no meio da multidão. Aquele cuja missão
consistia em abater o doge de Veneza. Chifres de falso marfim de cada
lado do crânio. Máscara de touro munida de um focinho em proporção alarmante.
Os olhos dissimulados brilhavam por trás do peso da máscara. Entretanto, a
armadura feita de malhas e placas de prata era verdadeira e suficientemente
leve para permitir-lhe mover-se com toda a rapidez exigida. Uma capa
vermelho-sangue escondia duas pistolas cruzadas nas costas, de que necessitaria
para cumprir a tarefa. Trazia joelheiras de metal por cima das botas de couro.
Um gigante, uma criatura imponente cuja respiração atroadora tinha-se a
impressão de escutar. O Minotauro.
Pronto
para devorar as crianças de Veneza no labirinto da cidade em plena
efervescência, o Minotauro se preparava para mudar o curso da história. O
carnaval havia começado. Poucos meses antes, numa noite escura, Marcello
Torretone quebrava o silêncio com gritos dilacerantes no interior do teatro San
Luca. A Sombra estava lá. A Sombra que invadira a cidade, pairando sobre os tectos
da Sereníssima. Sob os reflexos do pôr-do-sol, se esgueirara furtivamente no
teatro. O padre Caffelli a chamava de Il Diavolo, o Diabo em pessoa, mas em seu
relatório Marcello havia mencionado o outro nome pelo qual era conhecido por
seus simpatizantes: a Quimera. O padre tentara prevenir Marcello e este se
rendera à evidência. Algo de muito grave se tramava. Naquela noite, caíra numa
armadilha. Um desconhecido misterioso marcara um encontro com ele ali, no San
Luca, ao final da primeira representação de L'Imprásario di Smime, onde
obtivera um sucesso triunfal. Proprietários do San Luca, os Vendramin foram os
últimos a partir. O desconhecido se escondera nas coxias enquanto o público
saía. Marcello havia embrulhado a roupa de cena, que repousava agora não muito
longe, atrás das cortinas. Havia relido a carta lacrada que lhe trouxeram, na
qual um certo Virgílio lhe prometia informações da mais alta importância. Uma
ameaça pairava sobre as instituições de Veneza bem como sobre a pessoa do doge.
Marcello planeava encontrar Emilio Vindicati no dia seguinte; o Conselho dos
Dez precisava ser avisado da trama, sem demora. Mas, no momento, só podia
maldizer sua imprudência. Sabia: não iria a parte alguma. Não veria o dia
seguinte.
Tinham-no
atacado, espancado e amarrado nas pranchas de madeira. Semiconsciente, vira
mover-se uma forma encapuzada da qual não podia distinguir o rosto. Pousara o
olhar no martelo, nos pregos, na lança, na coroa de espinhos, e naquele curioso
instrumento de vidro que brilhava na mão do visitante. Marcello estava
aterrorizado. Quem... Quem é você?, articulou, a fala pastosa. Como resposta, o
outro se contentou em soltar um riso sardónico. Depois, Marcello só ouviu a
respiração surda, profunda». In Arnaud Delalande, A Armadilha de Dante,
Editora Record 2009, ISBN 978-850-107-907-7.
Cortesia de
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