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Até que, por volta das seis da tarde, enquanto, em Lisboa, o Presidente do
Conselho de Ministros, depois de se render ao Movimento das Forças Armadas,
saía do quartel do Carmo dentro de uma chaimite a salvo de algum balázio perdido,
de algum calhau no meio dos cor…, talvez com a cabeça entre as mãos, contemplando
os sapatos, medindo os atacadores, a desfazer e a refazer os nós, talvez de
olhos fechados a pensar na put… da vida, o professor Marcello Caetano, o pai da
menina Ana Maria, ou talvez a espreitar
pela janelinha da chaimite, a espreitar a alegria esfuziante dos soldados, da
multidão em bicos de pés, todos pendurados nas árvores como macacos, nos
candeeiros de iluminação pública, país do car…, talvez estivesse ele a pensa, país
dum filha-da-p…, seis da tarde, mais coisa menos coisa, o doutor Augusto Mendes
e o Bocalinda, num ermo sem dono, num lugar que jamais lembraria ao diabo, muito
menos ao menino Jesus, encontravam, tombado no chão, coberto por uma nuvem de moscas,
a cara crivada de chumbos, o corpo do Celestino. E só não houve dúvidas de que era
quem procuravam por causa do olho de vidro que permanecia intacto sobre a carne
desfeita. A espingarda do Celestino encontrava-se caída, a cerca de três metros
do corpo. Num gesto irreflectido, o doutor Augusto Mendes pegou na arma e confirmou
que se tratava da estupenda Browning de dois canos que ele próprio lhe oferecera,
havia mais de vinte anos, e na qual ainda se podia ler, numa inscrição gravada na
coronha: com admiração e amizade, AM. Depois, abriu a culatra e verificou que os
dois cartuchos permaneciam incólumes, dentro das câmaras. Mataram-no, disse. Ou
talvez não tenha dito nada. Talvez tenha apenas pensado: mataram-no. Voltou a pousar
espingarda no mesmo sítio e, virando-se, de repente, para o Bocalinda,
pediu-lhe para ir avisar os outros e ligar à GNR. Sem escarcéus. Pianinho. Ele ficaria
ali, de vigia ao defunto. Já anoitecia quando os guardas finalmente chegaram ao
local. Com a luz que restava, tiraram medidas, fizeram desenhos, anotaram respostas,
embrulharam o corpo e levaram-no, juntamente com a Browning.
O padre
Alberto encarregou-se de dar a notícia à Ressurreição, coitada, que ainda no
fora desta que encontrara o caminho da felicidade. Os restantes ilustres voltaram
cada qual para sua casa. Exaustos, combalidos, pesarosos, levando consigo a imagem
do Celestino estendido no chão: o rosto desfeito, o olho de vidro a boiar numa amalgama
de carne e sangue. Uma nuvem de moscas. Apesar das insistências da mulher, o doutor
Augusto Mendes não quis jantar. Fechou-se na varanda que dava para o jardim e sentou-se
no velho cadeirão de verga, como se se preparasse para acender o cachimbo. E
acendeu, de facto, o cachimbo, atento às silhuetas das árvores que recortavam o
céu, como fantasmas. Quarenta anos, pensou. Quase quarenta anos sobre o dia em que,
debaixo de uma tempestade medonha, na estrada sulcada pela fúria das águas, um rapaz
muito magro, completamente encharcado, chapéu preto vergado ao peso da chuva, nenhuma
bagagem nas mãos, assim que avistou gente, caiu por terra, como se andasse há muitas
horas, há muitos dias, à procura de uma oportunidade para cair por terra. Foi
ali. Teve sorte. Trouxeram-no para o consultório. Deitaram-no na marquesa. Despiram-no.
Lavaram-no. Trazia o olho direito tapado com um lenço preto. O doutor Augusto
Mendes levantou o lenço e viu que já não havia olho nenhum. A ferida era recente.
Mandou toda a gente sair do consultório. Como te chamas?, perguntou-lhe, depois
de o tratar. Celestino, respondeu o forasteiro. O que te aconteceu, Celestino? Azares
da vida. E, sem mais perguntas, o doutor Augusto Mendes arranjou-lhe um casebre
onde dormir durante o período de convalescença, que se adivinhava longo. Também
lhe deu roupas, comida e algum dinheiro. Com o passar dos dias, toda a aldeia se
foi acostumando à presença daquela silhueta sinistra, silenciosa, quase indistinguível
da própria sombra. Estrada abaixo, estrada acima, ligadura em diagonal à volta da
cabeça, um ligeiro enchumaço sobre o olho direito, ou sobre a cavidade que outrora
alojara o olho direito, os dedos compridíssimos, uma certa forma distinta de amortalhar
o tabaco, de pendurar o cigarro no canto da boca e de o deixar para ali
esquecido, a arder». In João Ricardo Pedro, O Teu Rosto Será o
Último, Prémio Leya 2011, Leya, 2012, ISBN 978-989-660-209-3.
Cortesia de Leya/JDACT