sábado, 14 de janeiro de 2017

Maria Adelaide M Teixeira-Gomes. «Ontem nem quis pegar na minha Glória à vista de ninguém, mas quando a apanhei sozinha no berço ia-a comendo com beijos»

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«Maria Adelaide completara dezasseis anos quando lhe colhi as primícias, e, à semelhança do que sucede com frequência na terra onde habitávamos, os pais, que eram pobres, consentiam em que mantivéssemos relações coram populo, indo eu todas as noites dormir na sua companhia. Podia tê-la tirado logo à família, montando-lhe casa à parte, mas nem eu nem os pais sentíamos grande desejo de efectuar a separação: eles porque tendo-a em sua companha melhor lhe exploravam os proventos da mancebia; eu para não dar mais solidez à ligação, esperando vagamente que fosse passageira...
Reminiscências do começo: a minha rapariga estava triste; a mãe tinha-lhe batido, desonrando-a de tudo, chamando-lhe os nomes mais feios que se podem chamar a uma mulher. E as suas lamentações não tinham fim: ela é que sustentava a família, ela é que pagava as casas e dava constantemente presentes a todos, em especial às irmãs, que também lhe não tinham respeito nenhum, e a mãe ainda em cima lhe batia. E isso é que mais a magoava. Estou consigo há tanto tempo (alguns meses apenas) e eu bem vejo como me trata: olha lá Santo Antoninho que não sei onde te ponha, e a minha mãe bateu-me só porque eu puxei as orelhas à Joaquina (a terceira irmã), que é uma grandíssima atrevida e me arranca os cabelos aos punhados. Se não fosse por atender ao meu pai, que acode por mim, deixava-os a todos. Que se eu estivesse séria, e não brincasse e não risse, já elas todas me tinham respeito. Também hoje, só por teima, não quis deixar de comer e fui cear muito séria. Mas amanhã já eu começo a rir e a brincar com todos e logo me perdem o respeito. Ai!, eu gosto tanto, tanto, da minha Glória (a irmã mais nova); parece mesmo que é minha filha, tão linda, tão limpinha! Eu quero ter um mocinho; faça-me um mocinho, não é verdade? Ah!, se eu tivesse um mocinho, ontem, quando a minha mãe me bateu, vestia-o, que havia de parecer um menino rico, e punha-me na rua sozinha, com ele nos braços. Os dias são tão grandes e eu ando tão aborrecida! E faço gosto em comer, em rir. Agora a minha paixão são chicharros alimados. Ontem havia chicharros alimados para a ceia; também por isso é que eu fui comer. Mas estou muito triste. Agora já não é tanto, que o meu amiguinho, com as suas festas, quase que me pôs alegre... Mas uma coisa que eu não quero é que a minha mãe me bata; e então pancadas nos braços, murros nas costas. Parece uma fera direito a mim. Mas espera que algum dia ponho-me direito a ela que nem um leão. Custa muito fazer o que eu tenho feito pela minha família e ainda em cima receber maus tratos e insultos. E diz que a casa é dela, porque ela a arrendou e ela é que vai levar os aluguéis à dona. Já viu isto? E tudo pago com o meu dinheiro; meu, não; seu, porque seu é tudo o que eu tenho. Eu sempre queria ver com os ganhos de meu pai, que neste mês foram um cruzado, ou pelo menos foi tudo quanto ele deu para casa, se haviam de andar todos tão bem vestidos e comidos. Mas eu não posso estar zangada muito tempo e ela já sabe isso. Ontem nem quis pegar na minha Glória à vista de ninguém, mas quando a apanhei sozinha no berço ia-a comendo com beijos. Ah!, não queria senão ter um mocinho, meu...

Estas queixas e lamentações pueris repetiam-se diariamente, mas eu nem lhes prestava atenção, e delas zombava, todo embebido na posse do seu corpo, que era admirável e dispensava, para ser adorado, quaisquer enfeites espirituais. A princípio a inevitável mistura com o resto da família tão-pouco me impressionava; achava-lhe até certo pitoresco, e, coisa curiosa, foi preciso muito estudo para distinguir ao longe a voz de Maria Adelaide das vozes das irmãs e da mãe, quando a não via e apenas a ouvia. Era uma voz vibrante, com o tom cristalino, que se perdia, ao baixar, em inflexões quentes, moduladas cromaticamente, sem asperezas. Um dia, porém, Maria Adelaide desabafou, com uma pena que lhe vinha do fundo da alma, para me dizer que a desonravam mesmo na presença do pai, que era um desgraçado, um pobrezinho, que ficava calado e não a sabia defender. Gostava muito do pai, muito; desejava-lhe fortuna, felicidade, tudo quanto fosse bom, mas a miúdo também lhe desejava a morte, só para não haver pé de dizerem diante dele aquelas coisas... E, sempre indignada e desconfiada com todos, e chorando porque um desconhecido, ao passar-lhe em frente da casa, vendo-a à janela, exclamara para a companheira: ah!, ela é sardosa?, pois pu… e gulosa...
Mas eu sempre a rir, e como reparasse num quadro novo, pendurado na parede, representando   um monstro crucificado, no género Senhor de Alvor, perguntei: e que bicho tão feio é aquele?, ela rindo com os olhos marejados de lágrimas, mas sorrindo já, tapava os ouvidos, corria para a velha cama e ia esconder a cabeça debaixo das almofadas». In Manuel Teixeira-Gomes, Maria Adelaide, 1938, Romances Portugueses, Obras Primas do século XX, Coordenação de Davis Mourão-Ferreira, Círculo de Leitores, Cortesia da Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia de CLeitores/LBertrand/JDACT