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Roma.
Agosto de 1503
«O Papa
Alexandre VI tinha uma cabeça semelhante a um enorme escroto. A gordura
escorreu-lhe pelo queixo e as suas pupilas negras e geralmente cruéis
dilataram-se enquanto contemplava o grande pudim doce colocado à sua frente. A sua
filha, Lucrécia Bórgia, contemplou-o e sentiu um vómito subir-lhe pela garganta.
Tinha apenas doze anos quando o pai lhe mostrara, pela primeira vez, as suas
preferências sexuais. Fora obrigada a masturbar-se com um crucifixo enquanto o via
sodomizar um criado de nove anos (maldito, mil vezes maldito). Quando o velho
balofo atingira o orgasmo, grunhira como um porco-espinho. Ao lado do pai, sentava-se
o seu irmão, César. Uma vez, depois de a ter mantido acordada toda a noite com a
sua luxúria insaciável, gabara-se de haver assassinado dezenas de homens e de como
um dia abateria o seu pai e tentaria aceder ao trono papal. Mas, agora, César
Bórgia estava doente. Era o morbo gálico (nome pelo qual eram conhecidas as
doenças venéreas, nomeadamente a sífilis). Toda a gente sabia. Tinha o rosto coberto
de chagas purulentas e havia uma loucura nos seus olhos pior do que qualquer
outra coisa que já lhe fora dado ver. A esquerda de Lucrécia, estava sentado um
jovem alquimista, Cornelius Agrippa. Um rapaz terno de dezasseis anos, com uns olhos
escuros e penetrantes, era, simultaneamente, o seu amante e companheiro de
viagem pela estrada que conduzia ao conhecimento oculto. Agrippa ensinara-lhe
muitas, muitas coisas: formas de conservar a sua beleza juvenil, formas de
fazer com que todos os homens a adorassem. Mais importante, ensinara-lhe novas formas
de matar. Juntos, haviam produzido poções assassinas, que traziam a morte com uma
velocidade estonteante e não deixavam qualquer vestígio. O seu olhar recaiu por
último em Domenico Gonzaga, o filho mais novo de Francesco II, marquês de Mântua.
O rosto belo de Domenico começava precisamente a ostentar os sinais de excesso de
boa vida. Ele e César, sabia, tinham brincado juntos em crianças, mas agora os dois
homens desprezavam-se mutuamente. Fora o seu pai, o papa, quem arranjara a visita
do filho do marquês, o último de uma longa lista de pretendentes à mão de Lucrécia.
É claro que César os odiava a todos.
No final
da refeição, Alexandre estava tão bêbedo que mal se aguentava de pé, mas Lucrécia
podia ver que ainda lhe sobrava energia para o seu passatempo favorito. O modo
como olhava para os dois escravos negros enquanto estes o ajudavam a levantar-se
da cadeira era inequívoco: um olhar que ela vira muitas, muitas vezes. Confiara-lhe
uma vez que os jovens negros que trouxera para o Vaticano o conseguiam satisfazer
de formas que nada nem ninguém conseguia. Era estranho, pensou, como os homens
da sua vida queriam partilhar consigo os seus segredos mais íntimos. Adorava a sensação
de poder que isso lhe dava. Em breve ficou sozinha com Domenico. Estavam sentados
perto um do outro, num sofá baixo. Ele fez deslizar um dedo pela face de Lucrécia.
Na verdade, não sou assim tão feio, disse, com uma voz entaramelada, o hálito rançoso
e os dentes e os lábios manchados de vermelho pelo vinho. Quem disse que éreis,
senhor? Recusaste-vos a procurar o meu olhar, à mesa. Isso teria sido impróprio.
Domenico deu uma sonora gargalhada, mas o seu rosto ficou sério quando se
apercebeu de que Lucrécia mantinha o rosto impassível e a compostura. Perdoai-me,
senhora, tossiu e ajeitou o colete. Foi o meu pai quem combinou esta visita,
Domenico, e não eu, disse, calmamente. O vosso pai é rico e o meu extremamente avaro.
É verdade
que o meu pai é um homem muito rico e eu sou o herdeiro das suas terras. Mas
gostaria de pensar que há mais em mim do que o mero dinheiro e os bens. Aproximou-se
dela e a sua respiração quente acariciou-lhe o pescoço. Voltou-lhe, rudemente, o
rosto para o seu e beijou-a violentamente na lboca. Lucrécia podia cheirar o
travo animal do seu suor. Antes de o conseguir deter, a sua mão subia-lhe pelas
pernas. Lucrécia fez um número perfeito de quem tentava repeli-lo. Era uma actriz
consumada que sabia que ultrapassava qualquer intérprete dos palcos de Roma.
Sentiu um frémito súbito de orgulho. Nesse momento, era ela quem detinha a posição
de poder, apesar de aquele tonto de gestos lentos pensar que era ele. Conhecia o
seu poder desde a infância. E agora, aos vinte e quatro anos, estava em pleno
florescimento e deliciava-se com o conhecimento de que ultrapassava qualquer rameira
barata do gueto». In Michael White, O Anel dos Bórgia, 2009, Casa das Letras, 2010, ISBN
978-972-461-956-9.
Cortesia de
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