terça-feira, 24 de janeiro de 2017

As Horas Distantes. Kate Morton. «Uma carta, disse, de alguém que eu conheci há muito tempo. Quando não passava de uma menina com 13, 14 anos…»

jdact

Uma carta extraviada encontra o destinatário. 1992
«(…) Aproximei-me dela, pondo-lhe o braço em redor dos ombros, tendo cuidado para não lhe sujar o vestido de sangue. Mas ela não disse nada. Não podia, disse-me mais tarde, não naquele momento. Ficou ali parada, rígida, enquanto as lágrimas lhe caíam dos olhos pelas faces e ela agarrava o pequeno e estranho envelope, de um papei tão fino que conseguia divisar o canto da carta dobrada lá dentro, bem apertado contra o seu peito. De seguida, desapareceu escada acima para o seu quarto, deixando instruções nervosas acerca da ave e do forno e das batatas. A cozinha fixou-se num silêncio magoado em redor da sua ausência e eu fiquei muito quieta, deslocando-me muito devagar, como se não a quisesse perturbar ainda mais. A minha mãe não costuma chorar, mas aquele momento, a sua perturbação e o choque que adveio, pareceu-me estranhamente familiar, como se já ali tivéssemos estado. Após quinze minutos durante os quais descasquei batatas de várias formas, ponderei em possibilidades quanto ao remetente da carta e cogitei na melhor forma de agir, decidi, por fim, bater à porta do seu quarto e perguntar-lhe se queria um chá. Nessa altura, já se recompusera e sentámo-nos em frente uma da outra à mesinha com tampo em fórmica da cozinha. Enquanto eu fingia não reparar que ela estivera a chorar, começou a falar do conteúdo do sobrescrito. Uma carta, disse, de alguém que eu conheci há muito tempo. Quando não passava de uma menina com 13, 14 anos. Surgiu-me uma imagem na cabeça: uma memória vaga de uma fotografia na mesinha de cabeceira da minha avó já velhinha e moribunda. Três filhos, sendo que a minha mãe era a mais nova, uma menina de cabelo escuro e curto, empoleirada numa coisa qualquer em primeiro plano. Era estranho, fizera companhia à avó centenas de vezes ou mais, mas agora não conseguia lembrar-me das feições daquela menina. Quiçá os filhos não se interessem realmente em quem os pais eram antes do seu nascimento; a menos que aconteça algo em particular que lance uma luz sobre o passado. Beberiquei o meu chá, aguardando que a mãe prosseguisse. Não sei se te contei muita coisa dessa época, contei? Durante a guerra, a II Guerra Mundial. Foi uma época terrível, era muita confusão, muito se desfez. Parecia..., suspirou, bem, parecia que o mundo jamais voltaria à normalidade. Como se tivesse sido afastado do seu eixo e nada mais fosse capaz de o repor no lugar certo. Envolveu a beira fumegante da caneca com as mãos, olhando fixamente lá para dentro. A minha família, a mãe e o pai, a Rita, o Ed e eu, vivíamos todos numa casinha na Rua Barlow, junto a Elephant and Castle, e no dia a seguir ao rebentar da guerra, nós, as crianças, fomos reunidas na escola, marchámos até à estação dos comboios e fomos postas em carruagens. Nunca me esquecerei, todas com as nossas etiquetas e máscaras e pacotes e as mães, que estavam com dúvidas, a correr pela estrada abaixo até à estação, gritando para que o revisor deixasse os filhos sair; depois gritavam aos filhos mais velhos para que tomassem conta dos irmãos, para que não os perdessem de vista. Ficou um momento a mordiscar o lábio inferior, enquanto a cena se desenrolava na sua memória. Deve ter sido assustador, disse em voz baixa. Na nossa família, não temos o hábito de dar as mãos, caso contrário teria tomado a mão dela na minha. Foi, ao princípio.
Tirou os óculos e esfregou os olhos. Sem a armação, o seu rosto apresentava uma expressão vulnerável, inacabada, como um pequeno animal noctívago confundido pela luz do dia. Fiquei feliz quando ela voltou a pô-los e continuou. Nunca tinha estado longe de casa, nunca passara uma noite longe da minha mãe. No entanto, os meus irmãos mais velhos estavam comigo e, à medida que a viagem prosseguia e um dos professores distribuiu tabletes de chocolate, começámos a ficar todos mais animados, começámos a dar vivas e a encarar aquela experiência quase como uma aventura. Consegues imaginar? Fora declarada guerra mas nós cantávamos e comíamos peras em lata e olhávamos pela janela a jogar o Eu Vejo. As crianças são muito resistentes, sabes? Por vezes até indiferentes. Lá chegámos a uma terra chamada Cranbrook, onde fomos divididos em grupos e postos em várias camionetas. Aquela onde me puseram e ao Ed e à Rita levou-nos até à aldeia de Milderhurst onde entrámos em fila indiana num átrio. Aí, aguardava-nos um grupo de mulheres da terra, de sorrisos postos nos rostos, listas nas mãos e ficámos em fileiras enquanto as pessoas andavam à nossa volta a fazerem as suas escolhas. Os mais novos depressa foram escolhidos, especialmente os mais bonitinhos, As pessoas deviam julgar que dariam menos trabalho, julgo eu, que não estariam tão impregnados pelo ar de Londres. Mostrou um sorriso contrafeito. Não demoraram a perceber. O meu irmão foi logo escolhido. Era um rapaz forte, alto para a idade, e os agricultores estavam desesperados por mão de obra. A Rita foi escolhida pouco depois com uma amiga da escola. Aquilo foi a gota de água. Estendi a mão e pousei-a sobre a dela. Oh, mãe. Não faz mal. Tirou a mão e deu-me uma palmadinha nos dedos. Não fui a última a ser escolhida. Alguns outros..., um rapazinho com uma doença de pele. Não sei que lhe aconteceu, mas ainda ficou naquele átrio quando eu saí. Sabes, mais tarde e durante muitos anos, forcei-me a comprar fruta tocada se fosse nisso que pegava primeiro na mercearia. Não andava cá a ver as peças todas ao pormenor e a devolvê-las à caixa se não estivessem em condições». In Kate Morton, As Horas Distantes, 2010, Porto Editora, 2012, ISBN-978-972-004-355-9.

Cortesia de PEditora/JDACT