sábado, 21 de janeiro de 2017

Os Sensos Incomuns. Maria Isabel Barreno. « Sorriu, era uma terna imagem. Querida, disse, eu entendo o teu entusiasmo pela ficção científica, e a tua convicção de que a análise racional…»

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(…) Assim Dezembro se enchera de festas: primeiro esse culto gélido da semente germinando em berço escuro, promessa discreta e ameaçada de tesouros futuros. Depois a antecipação, tão cara ao género humano, trouxera algumas abundâncias enganosas: presentes que enchiam os olhos das crianças, podendo-se neste ponto argumentar com a inocência da infância, festas celebradas com fritos quentes e frutos secos, também aqui se podendo invocar em desculpa a imitação das naturais armazenagens, os régios e mágicos açúcares e gorduras que do cerne da semente vinham a caminho, seguindo a estrela da vida, cheios já de presentes, ainda que simbólicos. Tudo isto era invocável, embora com algum esforço. Mas posteriormente haviam acumulado os ruídos, as luzes, muitas e piscantes, as trocas, as invejas e as ambições, e o dinheiro, tornando-se símbolo totalitário, tapara de vez as superiores energias, suas simbolizadas. Era esta alternância que urgia endireitar, enterrar os ruidosos faustos, extrair do ventre da terra os tesouros silentes. Fora esta a tarefa que ele fora enviado a cumprir, para que o tempo perdesse a perigosa curva que ameaçava rompê-lo no próximo decénio.
Ele ouviu a voz sussurrada da mulher, entrou no quarto do filho, viu-a lendo esforçadamente, na penumbra, os cabelos caídos ocultando-lhe a face, viu a criança na sua pequena cama de grades. Sorriu, era uma terna imagem. Querida, disse, eu entendo o teu entusiasmo pela ficção científica, e a tua convicção de que a análise racional é sempre exigível, de que todo o maravilhoso deve ser mostrado na mais chã e ancestral de suas origens, mas não achas esse conto pesado demais para uma criança de dois anos? De forma alguma, disse a mulher, vê como ele já dorme, tão tranquilo. Acordará em Setembro, a caminho de Dezembro, quando o ruído se tornar excessivo e ele tiver que abandonar o sonho.

O mártir e o redentor
Era um rapazinho rechonchudo, frequentemente distraído em densos pensamentos, muito seus. Enquanto viveu inteiramente em casa, inteiramente sob a alçada da mãe e das empregadas, foi uma criança bem disposta, risonha e gulosa. O mundo era pouco maior do que a cozinha e o quarto de dormir. Quando entrou para a escola tornou-se o alvo favorito das graçolas e agressões dos outros. Chorava em casa, primeiro, contando aos pais. O pai zangava-se, era um homem iracundo: ficava pálido, rangia os dentes de fúria. Gritava: defende-te, tens que aprender a ser homem, eu com a tua idade. Virava-se para a mulher e continuava a gritar: fizeste dele um inútil, um maricas. O rapazinho deixou de contar em casa as suas desgraças. Para não afligir a mãe, para não irritar o pai. Sentiu-se sozinho no mundo, tornou-se absolutamente vulnerável. Continuava inclinado às suas densas reflexões, que o distraíam, que o tornavam ausente e desajeitado, e lhe impediam os reflexos de defesa. Passara a sentir-se culpado por esses densos pensamentos, que, no entanto, eram sempre relativos à beleza do mundo e ao subtil funcionamento das coisas, passara a sentir-se indigno de qualquer amor». In Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho, 2008, ISBN 978-972-210-886-7.

Cortesia ECaminho/JDACT