quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A Rainha Vermelha. Philippa Gregory. «Os anjos falaram com ela? Ele sorriu de modo insinuante. Sim, menina. Quando ela era uma menina, pouco mais velha que vós. Mas como é que ela fazia as pessoas ouvirem-na?»

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Primavera de 1453
«(…) A aia fez-lhe sinal com a cabeça para lhe indicar que tinha de me obedecer, ele voltou-se e fez-me uma vénia. Eu servia o duque de Bedford, na França, quando ouvimos falar de uma rapariga que acompanhava os Franceses, disse. Alguns estavam convencidos de que ela era bruxa; outros, que ela tinha um pacto com o Diabo. Mas a minha barregã…, a aia estalou os dedos na direcção dele, e ele engoliu a palavra. Uma jovem que eu conhecia, uma francesa, disse-me que essa rapariga, Joana, de Domrémy, tinha falado com anjos e que prometera fazer o príncipe francês ser coroado e ocupar o trono da França. Era apenas uma donzela, uma rapariga do campo, mas afirmou que os anjos falavam com ela e que a visitavam para protegerem o país dela de nós. Fiquei extasiada. Os anjos falaram com ela? Ele sorriu de modo insinuante. Sim, menina. Quando ela era uma menina, pouco mais velha que vós. Mas como é que ela fazia as pessoas ouvirem-na? Como as levava a perceber que era especial? Oh, ela montava um excelente cavalo branco, vestia roupas de homem, inclusive usava armadura. Tinha um estandarte com flores-de-lis e anjos e, quando a levaram à presença do príncipe francês, ela reconheceu-o de entre a corte inteira. Ela usava armadura?, murmurei com espanto, como se fosse a minha vida a revelar-se diante de mim e não a história de uma rapariga francesa desconhecida. O que é que eu poderia ser, se as pessoas se apercebessem de que os anjos falavam comigo, tal como com essa tal Joana? Ela usava armadura e conduzia os homens na batalha, ele assentiu com a cabeça. Eu vi-a. Apontei para a leiteira. Trazei-lhe alguma carne e cerveja leve para beber. Ela saiu teatralmente em direcção à despensa, aquele homem desconhecido e eu saímos da leitaria e ele deixou-se cair sobre um banco de pedra, ao lado da porta dos fundos. Eu fiquei à espera, enquanto ela pousou uma travessa aos pés dele e ele atafulhou a boca de comida. O homem tragou a comida como um cão faminto, sem dignidade, e, quando terminou. bebeu tudo o que tinha na caneca, de um gole. Eu retomei o interrogatório: onde a haveis visto a primeira vez? Ah, respondeu ele limpando a boca à manga. Estávamos a preparar-nos para montar cerco a uma cidade francesa chamada Orleães, com a certeza de que iríamos vencer. Naqueles tempos, ganhávamos sempre antes de ela aparecer. Tínhamos os arcos grandes, e eles não; nós costumávamos limitar-nos a cortá-los em pedaços, para nós, era como apontar para os alvos no treino. Eu fui arqueiro, fez uma pausa, como se tivesse vergonha de esticar demasiado a verdade. Eu fui seteiro, corrige-se. Fazia as setas. Mas os nossos arqueiros venceram todas as batalhas. Isso não é importante, e a tal Joana? Estou a falar-vos dela. Mas tendes de compreender que eles não tinham hipótese de vencer. Homens mais sábios e melhores do que ela sabiam que estavam perdidos. Perderam todas as batalhas. E ela?, murmurei. Ela dizia que ouvia vozes, os anjos a falarem com ela. Diziam-lhe que fosse falar com o príncipe francês..., um pateta, um insignificante..., que fosse ter com ele e que o convencesse a reivindicar o trono como rei e que nos expulsasse das nossas terras na França. Conseguiu chegar até ao rei e dizer-lhe que ele tinha de ocupar o trono e permitir que ela liderasse o seu exército. Ele pensou que talvez ela tivesse o dom da profecia, não sabia, mas não tinha nada a perder. Os homens acreditavam nela. Ela era apenas uma rapariga do campo, mas vestia-se como um soldado, tinha um estandarte bordado com flores-de-lis e anjos. Enviou um mensageiro a uma igreja, e aí encontraram uma espada antiga de um cruzado, precisamente no lugar onde ela havia dito que estaria... Tinha estado escondida durante vários anos. De verdade? Ele riu-se e depois tossiu e cuspiu. Quem sabe? Talvez haja alguma verdade nisso... A minha barregã... A minha amiga considerava que Joana era uma donzela sagrada, que havia sido chamada por Deus para salvar a França de nós, os Ingleses. Acreditava que nenhuma espada conseguia tocá-la. Que ela era um pequeno anjo. E como é que ela era? Uma rapariga, tal como vós. Pequena, de olhos claros, confiante em mesma. O meu coração ficou inchado. Como eu? Muito parecida convosco. E as pessoas estavam sempre a dizer-lhe o que tinha de fazer? Que ela não sabia nada? Ele abanou a cabeça. Não, não, ela era a comandante. Seguia a sua própria visão de si mesma. Liderava um exército com mais de quatrocentos homens e caiu sobre nós quando tínhamos montado acampamento fora de Orleães. Os nossos lordes não conseguiram levar os nossos homens a lutar contra ela; ficámos aterrorizados, só de a ver. Ninguém se atreveu a erguer uma espada na direcção dela. Todos estávamos convencidos de que ela era imbatível. Avançámos para Jargeau, e ela foi atrás de nós, atacando, sempre ao ataque. Todos estávamos apavorados com ela. Jurámos que ela era uma bruxa. Que era uma bruxa ou que era guiada por anjos?, perguntei. Ele sorriu. Eu vi-a em Paris. Não havia nada de cruel nela. Parecia que o próprio Deus a segurava em cima daquele cavalo enorme. O meu senhor chamou-lhe uma flor da cavalaria. De verdade. Era bonita?, murmurei. Eu não sou uma menina bonita, o que constitui uma desilusão para a minha mãe, mas não para mim, porque eu elevo-me acima da vaidade». In Philippa Gregory, A Rainha Vermelha, 2011, Civilização Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-263-013-9.

Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT