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«(…)
A mãe lançou-lhe o braço ao redor dos ombros. Subiram abraçados. Conversavam
sobre pequenos nadas. Os olhos de André, aparentemente distantes, falavam com os
objectos reencontrados, perguntavam pelos que faltavam ou saíram do lugar. Ficas
no teu quarto. O quarto era dele e do Alfredo. Fora da bisavó.
Tenho
um canário numa gaiola
canta
tão bem que até consola...
Minha
criada chamada Aurora
pôs-se
a brincar
deitou-me
o canário fora.
No meio
da cantiga acabou-se-lhe o ar. Tinha noventa e sete anos. Quando se penteava, a
cabeleira branca caía-lhe quase até à cintura. O anjo da guarda continuava
parado à cabeceira da cama. Protegera-os com as suas asas na travessia da ponte
da vida. Mas não impedira as zaragatas, as dentadas e os arranhões por tudo e por
nada. O soalho rangeu sob o seu peso. Ouvia palavras antigas. Cada vez estás mais
maluco! Palavras de outro tempo, de outro regresso. A mãe olhava-lhe os sapatos
gastos, o fato grande de mais para o seu corpo, a mala de viagem aparentada com
os sacos de linhagem dos que regressavam pela Brunheda. Assomou à varanda. A casa
continuava plantada à beira da estrada olhando as oliveiras do vale e as
montanhas verde-cinza, agora mergulhadas na penumbra. Ainda procurou no horizonte
os castros antigos. Outrora comunicavam entre si por sinais de fogo. Agora só se
os relâmpagos queimassem a noite e, nas tempestades de Verão, coroassem de fogo
o alto da serra dos Vilares. Já no quarto, noite cerrada, reproduzia na memória
a casa toda, os mais pequenos vãos. A sala e os quartos da frente abriam-se para
a varanda. Debaixo do soalho, encontraram luíses de cobre, usados depois no jogo
da malha. No canto da sala, onde velaram o corpo da bisavó, estava agora o televisor.
Enterraram a bisavó numa manhã de chuva. Encaixilhado na vidraça da porta da varanda,
André menino ficou a ver o caixão a descer a rua no ruído do arrastar dos socos
sobre os paralelepípedos de granito.
Nos
baixos da casa ficava a adega, atravancada pelo bojo do tonel e a massa de
castanho da salgadeira. No cair do Inverno, ali penduravam o porco, de barriga aberta
e vazia, antes de baixar, já desfeito, à guarda da salgadeira. Nos baixos e no sótão
viviam os fantasmas. Murmuravam no uivar do vento e no tropear dos ratos. Certas
noites ouviam-se nitidamente os pés de cabra do diabo pisando os degraus de
madeira que subiam da adega. Mé! Mé! A mãe ouvira diferentes vezes o mé
e as patas de bode do diabo. Não era possível nem prudente duvidar da sua palavra.
Precisava de um banho quente. O esquentador substituíra a bacia de latão e os jarros
de água quente que a mãe lhes lançava pela cabeça. Esfregava-lhes com força o surro
que teimava em juntar-se nos joelhos e nas orelhas.
Ensaboou-se
devagar. E deu consigo a explorar a parede. Lá estava o buraco tapado com miolo
de pão por onde ele e o Alfredo espreitavam no banho a mulher do secretário.
Quando o corpo grande, branco e nu, emergia das águas da bacia incendiava os olhos
e os sentidos. Mas agora, em vez da mulher do secretário, era o corpo nu e imaginado
de Joana que lhe acendia a fogueira do corpo.
Tem juízo.
Quem te mandou a ti aceitar a boleia. Gozavas as férias noutra altura.
Deitou-se,
já anoite ia alta. Apesar do cansaço, o sono não chegava. Nas trevas e no silêncio,
os mortos caminhavam pela casa ao encontro dos vivos. Não te esqueças de ir à
missa! Vai à senhora Marquinhas pagar a letra. Deixa lá que não perdes pela demora.
Tenho de tirar a Joana da cabeça. Eram vozes e cheiros. O cheiro dos enchidos nos
alguidares, o cheiro do doce de abóbora na caldeira de cobre com o batalhão das
crianças à espera do sinal para rapar o fundo. André levantou-se, veio ao quintal.
A noite estrelada permitia distinguir o contorno das coisas. Encostou-se ao bocal
do poço, ladeado pelo patamar de cimento. Ali, numa tarde de calor africano, Basílio
e Alfredo esperaram Maria, a criada, que saía da retrete. De sexo em riste, as mãos
apertaram até que o esper… saltou enquanto a serviçal fugia com o rosto e o alto
das pernas em fogo: Vou dizer à vossa mãe!» In António Borges Coelho, Tempo
de Lacraus, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, ISBN 972-211-271-6.
Cortesia de
Caminho/JDACT