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Primeiro
andamento
«(…)
Um país pode ser terceiro-mundista e ter uma excelente literatura e meia dúzia de
bons cineastas. O passadismo torna-se incontornável quando tentamos algum tema mais
englobante: papel de Portugal na história europeia e mundial, características
essenciais da cultura portuguesa. Ou o turismo. Ou a identidade nacional. Em
todos estes temas fazemos a festa com os descobrimentos, os monumentos históricos
e o fado, juntando um pouco da fundação do país e do sebastianismo, se a ementa
necessitar de mais alguns condimentos. Duas simples perguntas: por que não há cartazes
do ICEP com obras de Siza Vieira? Por que é que de todo o nosso património
arquitectural moderno o único monumento figurando em cartazes do ICEP é o
monumento das Descobertas? O problema de fundo é que não nos estimamos. Não nos
estimamos (ainda) no presente, não nos estimamos suficientemente para termos de
nós, portugueses, uma imagem positiva e afirmativa.
E assim
regresso à vergonha. Exagero, quando a enuncio? Todas as crianças querem ser iguais
aos seus pares, todos os emigrados têm essa dor de identidade fragmentada? Não exagero
certamente quando digo que essas crianças, nas suas visitas a Portugal, pouco
ouvirão que as encoraje a ter algum orgulho de suas raízes portuguesas. O tom dominante
em Portugal é (ainda) o lamento, a autoflagelação, o lá fora é que é bom,
neste país nada presta. Apesar de termos quebrado o nosso isolamento, de
conhecermos mais sobre o mundo, de nos termos tomado menos provincianos. A vergonha
tem várias gradações e formas. Para além da vergonha sem disfarces das crianças,
crescem a raiva, a timidez, a introspecção obsessiva e acusadora. Com o passar do
tempo, tive frequentes oportunidades de analisar as muitas e desvairadas
reacções dos portugueses aqui residentes a essa imagem negativa de Portugal, as
minhas incluídas. Uma generalizada mistura de indignação contra a arrogância e o
egocentrismo franceses e de, surpresa?, autoflagelação. Uma autoflagelação onde
parecem coexistir estranhamente a impotência total, somos assim, não há nada a fazer,
com a mais irreal ilusão de omnipotência, nós (ou Portugal, ou o governo) é que
temos a culpa, culpa de tudo, aí incluída a ignorância francesa. A partir deste
ponto, dividem-se as reacções por classes. Todos os que dispõem de um nível cultural
e económico confortável tratam de desligar-se da imagem negativa pelas formas
de afirmação individuai mais variadas. Os outros, as concierges e os maçons,
defendem-se fechando-se num colectivo, a comunidade, as associações reinventando
folclores e tradições, confundindo identidade nacional com microcosmos regionais,
sonhando com um Portugal que já não existe. E aqui cheguei a um dos pontos
nevrálgicos da motivação para a escrita deste livro: o sofrimento.
A motivação
para tentar transformar notas dispersas e de objectivo incerto num texto de reflexão
e vivência, de razão e sentimento. O sofrimento dos emigrantes, no qual poucos
parecem reparar. A sua perda de identidade. Os seus esforços patéticos para juntar
os pedaços que espalharam pela estrada no seu ir e vir de desassossego. Fui convidada
pelas autoridades francesas a assistir a uma atribuição de prémios que se passava
num hospital pediátrico. Turmas de alunos de várias escolas francesas tinham feito
trabalhos sobre um país europeu, à escolha. Essa iniciativa envolvia também uma
componente de solidariedade com as crianças hospitalizadas, por isso fora o hospital
escolhido como local da festa. Uma turma de crianças que fizera um trabalho sobre
Portugal (com um professor francês) ganhou um prémio. No final fui felicitar a
classe. Por que escolheu Portugal?, perguntei ao professor. Já eu estava em França
havia mais de um ano. perguntei sem grande esperança de receber respostas animadoras
ou interessantes. Porque tenho muitos alunos de origem portuguesa respondeu-me,
e eles têm uma auto-estima tão baixa! Achei que este trabalho poderia ajudá-los.
Olhei os meninos, que iam saindo da sala, terminada a sessão. Caras tristes,
premiadas e tristes. Tão tristes como a tristeza daquele hospital de crianças doentes».
In
Maria Isabel Barreno, Um Imaginário Europeu, Editorial Caminho, 2000, ISBN
978-972-211-365-8.
Cortesia de
ECaminho/JDACT