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A
batalha de Covadonga
«(…)
Estamos em 722. Faz onze anos que os mouros invadiram a Península Ibérica e, aproveitando
a decomposição do reino visigodo, tomaram o poder. O velho reino godo, herdeiro
de Roma, afundou-se. O islão domina sem que ninguém seja capaz de fazer-lhe frente.
Até esse ano de Nosso Senhor de 722. Viajemos até às montanhas das Astúrias, às
portas dos Picos da Europa, perto de Cangas de Onís. Há, aí uma gruta chamada
Covadonga, quer dizer, Gruta Dominica, Gruta de Nossa Senhora. Chama-se assim porque
é o centro de um culto mariano; muito provavelmente era um lugar sagrado desde tempos
imemoriais. A essa gruta foi parar um grupo de rebeldes cristãos. Covadonga é um
lugar com aptidões para refúgio, um vale rodeado de montanhas e também fechado por
montanhas, com um único caminho que escapa, precisamente, para as montanhas. A história
não registou em que momento do ano aquilo ocorreu. Podemos conjecturar que foi no
final da Primavera, talvez no Verão, porque a guerra, antigamente,
interrompia-se no Inverno, quando a natureza se rendia ao frio. Fixemo-nos agora
nos rebeldes. São muito poucos, talvez umas centenas, talvez menos. Não há apenas
guerreiros, mas também mulheres e crianças. Foram ali parar quando fugiam. Poucos
meses antes tinham-se levantado contra os mouros: recusavam-se a pagar os
impostos que o governador muçulmano exigia. Começou, então, a perseguição. Alguns
homens, desorganizados e mal armados, de modo nenhum se podiam impor ao
poderoso invasor. As tropas mouras, disciplinadas e treinadas, foram acossando
os rebeldes cristãos vale após vale. Os danos que os cristãos lhes podiam inflingir
eram escassos. Assim chegaram os rebeldes, encurralados, ao vale de Cangas, à gruta
de Covadonga. Quem comandava os rebeldes? Pelágio, um guerreiro visigodo.
Porém, os rebeldes não eram apenas visigodos, e, inclusivamente, é muito provável
que houvesse apenas godos entre eles; a maioria devia ser asturiana, populações
autóctones do friso cantábrico, que tinham, no entanto, encontrado em Pelágio um
líder capaz de chefiar a resistência. De Pelágio falaremos depois, e também dos
asturianos ou astures. Por agora, fiquemo-nos por este quadro: o punhado de rebeldes
barricados na sua gruta. E, diante deles, o exército mais poderoso do seu tempo.
Os mouros, para dizer a verdade, não tinham prestado grande atenção àquele levantamento
de rebeldes cristãos: não deixavam de ser umas quantas centenas de nativos mal-armados
e pior alimentados. Mas o governador mouro do norte peninsular, um berbere
chamado Munuza, tinha aprendido a desconfiar das aparências. Tinha de acabar com
aquele foco de rebeldia. Com pressa, Munuza pediu reforços a Córdova. E o emir,
Ambasa, acedeu a enviar um corpo expedicionário comandado pelo general Al-Qama.
Dizem as crónicas antigas que 180 000 islamitas acudiram à chamada. Seguramente,
não foram mais de 10 000. Em qualquer caso, suficientes para acabar com aquelas
poucas centenas de rebeldes cristãos fechados na sua gruta.
Assim,
no final, se dispôs a batalha. Os cristãos, poucos e sem alimentos; os mouros,
muitos e bem armados. Porém, o terreno jogava a favor dos cristãos: mover um
exército numeroso por entre o labirinto asturiano de montes e vales, numa época
como o século VIII, sem estradas nem pontes, era um calvário. E os rebeldes, pelo
contrário, conheciam o terreno palmo a palmo. Os mouros tentaram um acordo diplomático:
enviaram um bispo traidor, dom Opas, para que convencesse Pelágio a entregar-se
e a abandonar toda a resistência. Pelágio recusou-se e deu batalha. As tropas de
Al-Qama acabariam por ser dizimadas. A Crónica de Albelda, datada de
881, no reinado de Afonso III, relatou o facto deste modo: Pelágio estava com
os seus companheiros no monte Auseva e o exército de Alkama chegou até ele e ergueu
inumeráveis tendas diante da entrada de uma gruta. O bispo Opas subiu a um montículo
situado em frente da gruta e falou assim a Rodrigo: Pelágio, Pelágio, onde
estás? O interpelado assomou a uma abertura e respondeu: estou aqui. O bispo disse
então: creio, irmão e filho, que não ignoras como até há pouco tempo a Espanha se
achava unida sob o governo dos godos e brilhava mais que os outros países pela sua
doutrina e ciência, e que, no entanto, reunido todo o exército dos godos, não pôde
suster o ímpeto dos ismaelitas, poderás tu defender-te no cimo deste monte? Parece-me
difícil. Escuta o meu conselho: volta ao teu acordo, gozarás de muitos bens e desfrutarás
da amizade dos caldeus. Pelágio respondeu então: não leste nas Sagradas Escrituras
que a igreja do Senhor será como o grão de mostarda e crescerá de novo pela
misericórdia de Deus? O bispo respondeu: verdadeiramente, assim está escrito. [...]
Alkama mandou então começar o combate, e os soldados tomaram as armas.
Ergueram-se as balistas, prepararam-se as ondas, brilharam as espadas, encresparam-se
as lanças e incessantemente se lançaram setas. Porém, nesse momento, mostraram-se
as magnificências do Senhor: as pedras que saíam das balistas e chegavam a casa
da Virgem Santa Maria, que estava dentro da gruta, voltavam-se contra os que
disparavam e matavam os caldeus. E, como a Deus não fazem falta lanças, pois dá
a palma da vitória a quem quer, os caldeus empreenderam a fuga.
Esta
crónica não é a única versão dos factos de Covadonga que nos chegou. Há outra, a
versão moura, que é substancialmente diferente. É a crónica de Al-Maqqari,
muito posterior, de princípios do século XVII». In José Javier Esparza, Astúrias,
A Esfera dos Livros, Lisboa, 2016, ISBN 978-989-626-773-5.
Cortesia
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