sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «Coisa extraordinária aquela porque pouco depois perguntava ao seu rei se também havia avistado a tal cruz prateada. Mas nada, ninguém a vira…»

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«(…) A jovem rainha Constança de Aragão, que já estava com 14 anos, recebeu Vataça Lascaris de braços abertos, que as saudades já eram muitas e quis saber como estavam sua mãe e seus irmãos e como tinha sido a viagem a Barcelona. Vataça nada escondeu a Constança e pediu à rainha que se pudesse ausentar de novo da Corte de Castela, mal chegassem novidades de Barcelona, sobre a viagem de Ulisses Patrai a Constantinopla e a Niceia. Os dias passaram descontraidamente e amiúde vinha-lhe à lembrança a viagem que fizera com sua mãe até Zaragoça e a dúvida que alimentara o seu desassossego sobra a débil saúde de sua mãe. Ainda continuaria enferma ou já se sentiria melhor? Apenas nessas alturas lhe vinha à memória também o tesouro dos Lascaris, ou melhor, o tesouro de Niceia. E dizia para si própria que jamais desiludiria sue mãe e que tudo faria para corresponder aos seus desejos.
Certo dia, tendo ido a uma caçada com el-rei e com a rainha Constança, quando os arqueiros perseguiam um veado a toda a corrida dos cavalos, e Vataça se aproximava do veado com o arco em riste e a seta apontada ao coração do animal, um enorme clarão cegou-a por instantes e o cervo escapou. Vataça estacou o seu cavalo e olhando para o céu viu de relance uma enorme cruz prateada, que tal como surgira de imediato, desaparecera. Coisa extraordinária aquela porque pouco depois perguntava ao seu rei se também havia avistado a tal cruz prateada. Mas nada, ninguém a vira e Vataça Lascaris ainda seria objecto de chacota por ter deixado fugir a caça, coisa em que era exímia e sempre que vestia bragas como homem e se equipava de caçadora era seguro que algum cervo ou algum javali ficaria para a ceia. Já não esqueceria aquele episódio e relacionava-o com sua mãe e com a Cruz do Santo Lenho.
Corria ainda o ano do Senhor de 1304. Havia chegado o Verão e calotes abrasadores se faziam sentir por terras de Castela. Temperaturas altíssimas aconselhavam à permanência dentro das paredes do palácio, muito mais frescas e convidativas ao repouso e à sesta. Corriam rumores pelos corredores da corte, de que se preparava uma cimeira entre Castela e Aragão, para pôr fim às constantes lutas entre os dois reinos, pela posse do reino de Múrcia. E tais rumores também referiam a presença do rei de Portugal, nessa cimeira, entre os mais altos responsáveis do poder político da Ibéria. Vataça Lascaris não cabia em si de contente e a ansiedade que sentia, apenas pela possibilidade de rever o seu amado rei, quase a sufocava. Mas de facto fazia todo o sentido a presença do monarca Dinis I. Primeiro, porque era casado com Isabel de Aragão, filha de Pedro III, rei de Aragão, Valência, Maiorca, Sardenha, Sicília e conde de Barcelona, e depois porque também era pai de Constança, rainha e esposa do rei Fernando IV de Castela. Logo, os diferendos entre Castela e Aragão tinham tudo a ver com Dinis I de Portugal. Por isso, Toledo preparou-se para receber o rei de Portugal e decorou as suas ruas e praças com os mais belos enfeites, os seus artesãos e artistas prepararam as suas melhores obras para venda aos milhares de pessoas que viriam até à capital de Castela. Enormes tapetes árabes pendurados nas janelas e varandas emprestaram à cidade o ambiente da grandiosidade da romaria e do arraial, apenas visto quando das comemorações religiosas ou reais, mas desta vez muito mais espectacular. As mais belas espadas, cimitarras, adagas, punhais e facas de todos os feitios, autênticas obras dessa arte especial de Toledo, enchiam enormes bancas de madeira, em exposição, aos olhares e às bolsas de locais e visitantes. O próprio palácio de Alcazar era objecto de embelezamentos interiores e exteriores, que ainda o faziam sobressair mais, de forma mais imponente, do casario da cidade. Até as rochas que o sustentavam foram limpas de ervas e plantas daninhas e cobertas de heras e chorões vermelhos». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT