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e wikipedia
«(…)
A minha geração dotou-se de uma consciência aguda de fim, sabedora de que
existir é um contrato a termo, com data de validade invisível mas exacta, do
mesmo modo que um vulgar produto de consumo, na secção frio de um grande
supermercado. Somos uma coisa a prazo como um crédito habitação a vinte, a
trinta anos. Com frequência interrogo-me, a partir de agora, deste preciso
segundo, quanto tempo me resta, ainda, antes de morrer? Depois, desisto
exausta. O exercício de prever a sua própria morte é cansativo. Sei que um dia
estarei morta e todas estas humanas angústias dissipar-se-ão. É uma esperança
apaziguadora a morte. Antes de conhecer Jean demorava-me na noite. Percorria os
sítios de encontros na internet em busca de um sinal de vida, de uma mensagem
com palavras escritas. A televisão, o portátil, a televisão, o cinema e os
vídeos alugados, o portátil, outra vez a televisão, o cinema e os vídeos
alugados no clube do bairro entretinham e safavam o tempo. Tinha, contudo, no
andar de cima, Marie Anne, dançarina num cabaret de Pigalle, para me dar as
horas, já noite alta. O meu tempo era, então, acertado pelo ritmo dos clientes
de Marie Anne, alguns discretos outros ruidosos, outros embriagados e ruidosos,
outros embriagados e chorões como bezerros desmamados. Para ser honesta, o meu
caminho nunca se cruzou com o caminho de Marie Anne. Só posso descrever-vos o
que ouvia através das quatro paredes que separavam a noite. Não sei se ela era
bonita, alta e magra. Não sei se costumava pintar os olhos, sublinhar os lábios
de uma cor viva para atrair os homens. Nada disso vos posso dizer. Sei contudo,
que havia homens que lhe extorquiam gritos agudos, dilacerados de prazer. Havia
outros que lhe rompiam a carne com voraz animalidade e ela gemia de dor. Havia
outros silenciosos que a possuíam com delicadeza, sem pressa, e a faziam
chorar. Eram estes os mais cruéis para Marie Anne. Ela chorava durante horas a
fio, mesmo muito depois de eles terem partido. A era da tecnologia sugou-me a
vida directamente das veias, dizia Jean. Eu sei. Sei muito bem o que pretendes
dizer com isso, respondia eu.
As
histórias sempre vieram a mim em imagens fáceis e arranjadas. Ingurgitava tudo.
E quando, contaminado do pessimismo transportado pelas imagens fáceis e
arranjadas, enfiava-me nas salas de cinema. Todos os filmes, todos os géneros,
todas as sessões eram um recurso para enganar a realidade, até tarde e noite se
confundirem em dias de bruma, tempo zero, vida zero. Não tomem o que aqui vos
digo por lamechismo. Tenho horror de choradeiras. No entanto, através de
pequenas nesgas de conversa, pude confirmar a compatibilidade dos nossos
anseios. Jean viu em mim uma bomba de retardamento ou se quiserem uma bomba
lógica que obedece ao comando de um sistema por oposição a outro. Para esse
encontro, vesti-me com simplicidade. Não queria entrar a matar. O estilo mulher
fatal deixa-me desconfortável. Jean, que eu imaginava simpático, descontraído e
tão desesperado quanto eu, podia intimidar-se. Foi o anúncio de apresentação,
ao lado da sua fotografia a preto e branco, que me interpelou: homosapiens-sapiens
deseja consagrar-se ao amor. Tinha uma certa piada. A intencionalidade dos tons
sombrios na imagem teve o seu efeito, a pose estudadamente nostálgica e sofredora
serviu de rastilho. Jean, em contrapartida, cheirava a piroso. Que falta de
imaginação para escolher um pseudónimo. Ao mesmo tempo, desculpei-o,
acreditando numa certa candura de espírito. De qualquer forma, seria incapaz de
escolher alguém com um nickname garanhão ou cavalo de Tróia. Preparei-me com
alguma ansiedade. Sobre a minha vida sentimental tenho de assumir a influência
de todas essas baboseiras vindas de Hollywood. Engoli, bem à vontade, a maior
parte dos pratos fortes da indústria do cinema. Comédias românticas, contos de
fadas emocionantes tal Pretty Woman, Titanic e outras que tais, histórias de
amor que ainda hoje têm o dom de me embalar, e não perguntem porquê. Nunca tive
consciência de que o facilitismo é um inimigo castrador que não se vê. Jean
dizia que se pudesse, se tivesse tempo e meios, levaria a indústria das imagens
a tribunal. Porquê? Perguntava-lhe.
As
imagens fáceis e arranjadinhas esgotaram-me os sonhos, respondia. Sonhar,
fantasiar, reflectir, parece ter-se tornado numa perda de tempo, explicava ele.
Jean falava como se soubesse que também eu dera anos e anos da minha existência
a essa indústria diabolicamente próspera. Infância, adolescência e já adulta,
milhares de horas frente a um ecrã. Ver televisão, navegar na internet, ir ao
cinema, ver vídeos. Foi um tempo corredio, curto e sempre em conflito com
actividades básica como comer, urinar ou defecar. Deixei as imagens ditarem-me
as cores e os cheiros das montanhas. Deixei as imagens ditarem-me as cores e o
estilo da minha roupa. Deixei que elas me mostrassem o mar pela primeira vez,
um réptil pela primeira vez, um beijo pela primeira vez, um pénis pela primeira
vez e tantas outras coisas. Durante anos, aceitei sem resistência essas
realidades propostas, um mundo virtual e desvirtuoso onde a toda a actividade
se reduz à qualidade de espectador-consumidor, na verdade uma não actividade,
um marasmo, uma paralisia cerebral. Só que, então, eu não sabia. Felizmente
tinha Raquel a repetir-me que é urgente viver sem medo. Ela era a minha melhor
amiga. Confidente única. Acompanhou os episódios das minhas aventuras e
desventuras como uma telenovela. Redonda, apagada e sem charme, Raquel vivia na
pura contemplação depois duma experiência severa». In Ana Miranda, O Diabo é um
Homem Bom, Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN
978-989-697-552-4.
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