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«Monstra
sane dicta perhibent a monstrando, quod aliquid significando, demonstrent; et
ostenta ab obstendendo; et portenta a portendendo, id est praeostendendo; et
prodigia, quod porro dicent, id est, futura praedicant» In Augustinus Hipponensis, De Civitate Dei
«O relacionamento
entre saber e poder, propalado por Francis Bacon e recodificado por Michel
Foucault, exprime-se com propriedade em processos linguístico-discursivos como
a representação, aqui compreendida, sob um prisma construcionista (há,
grosso modo, três abordagens concernentes à significação pela linguagem: a reflexiva,
a intencional e a construcionista; a primeira pressupõe
transparência entre signos e coisas, cabendo à linguagem actuar meramente como
um espelho reflector do real; a segunda, por sua vez, reduz a representação às
intenções do autor, tomando-o como detentor único de um significado restrito às
suas pretensões de significação, e ignora a natureza interactiva da linguagem,
desconsiderando que a construção de sentidos depende de convenções linguísticas
e códigos partilhados; já a terceira, debitária do redimensionamento do
conceito de linguagem pela virada linguística, reconhece o carácter colectivo
dos processos linguísticos, assumindo que os significados são constituídos na e
pela linguagem, e não confunde o mundo material com as práticas e os processos
simbólicos por que esta opera nem nega a existência deste, pois os significados
não são forjados pelo mundo material, mas, antes, pelos sistemas linguísticos actuantes
como medium de interpretação, codificação e atribuição de sentidos a
ele; portanto, essa perspectiva considera que o sentido, em vez de intrínseco à
materialidade do signo, é construído conforme a função simbólica que lhe é
imputada; considera, ainda, que não se reflecte o mundo ao representá-lo, mas
de facto se o cria, uma vez que é precisamente a mediação dos sistemas de
significação que o torna inteligível), não como codificação especular de
referentes apriorísticos, mas, isto sim, como um sistema linguístico e cultural
arbitrário e intrincado em relações de poder nas quais os significados são
constituídos na e pela linguagem, os objectos a que estes remetem são forjados
no acto mesmo de sua enunciação e as representações legitimadas estabelecem,
embora nunca definitivamente, noções de identidade e diferença.
A
operacionalidade das práticas representacionais na construção da realidade se
evidencia na noção de espaço, que, conforme Lefebvre, constitui-se na
relação tensional entre a materialidade e a imaginação, de modo que não se
pode concebê-lo como dado apriorístico, mas, antes, como uma produção. Em
exemplo inequívoco de como o espaço constitui um construto cultural, o crítico
literário inglês William Hazlitt, em ensaio de 1821 intitulado Por que objectos
distantes atraem, assumia um impedimento avant la lettre ao explicar
a atractividade dos espaços remotos para o exercício da imaginação: objectos
distantes agradam porque, em primeiro lugar, implicam uma ideia de espaço e
magnitude e porque, não estando muito próximos de nossos olhos, nós os vestimos
com as cores indistintas e arejadas de fantasia. [...] quando a paisagem
desaparece da vista maçante, nós preenchemos o espaço estreito, sem
visibilidade, com tons de desconhecido feitio, e tingimos a perspectiva
nebulosa com esperanças, desejos e temores mais atraentes. [...] tudo quanto é
colocado fora do alcance do sentido e do conhecimento, tudo o que é percebido
de forma imperfeita, a fantasia acrescenta ao seu lazer. Nessa prática de
significação não raro inscrita em um sistema valorativo etnocêntrico, e,
portanto, calcada no enquadramento de alteridades etno-geográficas em
determinados regimes de verdade que lhes atribuem significados
frequentemente caros à instauração e / ou manutenção de assimetrias de poder, o
contacto com uma cultura outra enseja um rito quase instantâneo, pautado na
classificação desta, numa universalização narcísica de padrões evolutivos e
códigos culturais, como sincrónica se análoga à nossa ou anacrónica se estranha
a nossos paradigmas. Assim, a inscrição do Outro como parâmetro para a
definição, simétrica ou contrastiva, de nossa própria identidade, sinaliza que,
em última instância, os predicados que lhe atribuímos informam menos acerca
dessa nossa exterioridade constitutiva (expressão tomada de empréstimo a
Hall, para quem é apenas mediante a relação com o Outro, a relação com o que
não é, com precisamente o que falta, com o que se tem chamado de sua exterioridade
constitutiva, que o sentido positivo de qualquer termo, e, portanto, a sua identidade,
pode ser construído) do que de nós mesmos.
Em
macroesfera, essa relação projectiva atingiu expressão máxima no imperialismo
que, ao se valer de um exercício textual pautado na produção sistémica de géneros
os mais diversos, conferiu respectivos estatutos de identidade e alteridade aos
impérios e aos seus Outros, na medida em que a universalização de
paradigmas culturais etnocêntricos chancelava polarizações supostamente
ontológicas que, por sua vez, legitimavam a instauração e / ou manutenção de
assimetrias de poder. Como, em um regime de representação etnologocêntrico, a
possibilidade de (auto-)legitimação depende da prerrogativa de (d)(escre)ver,
grupos despossuídos de autoridade discursiva para legitimar sua autoetnografia
são inscritos / escritos por aqueles que, situados em posição favorável nas relações
de poder, fazem-no em conformidade com acepções de cultura monocentrais cuja
análise tem ocupado um veio dos estudos pós-coloniais atento aos modos como o
Ocidente metropolitano tem forjado discursivamente sua alteridade desde a
descoberta do Novo Mundo aos neocolonialismos contemporâneos». In
Raimundo Sousa, A Monstrificação dos Irlandeses na Imaginação Geográfica de
Giraldus Cambrensis, UFMGeraia, FL, DLetras, Belo Horizonte, Revista
Medievalista, Nº 21, Janeiro-Junho 2017, Universidade Nova de Lisboa, FCS e
Humanas, FC e Tecnologia, ISSN 1646-740X.
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