terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Um Imaginário Europeu Maria Isabel Barreno. «Mas na imagem de Portugal que os franceses re-transmitem são também reconhecíveis os traços dessa imagem que foi delineada e exportada pela ideologia da ditadura salazarista…»

jdact

«Um espaço de nada
Por íntima deslocação do sujeito
para espaços de outrem
nascem as catástrofes humanas
e as maravilhosas aventuras

entre catástrofe e aventura
um espaço de nada
um nada de tempo
variações de ser»

Primeiro andamento
«Como ensinar português a crianças que têm vergonha de ser portuguesas? Como lhes retirar essa vergonha se ela é simultaneamente incutida pela sociedade francesa, onde nasceram e crescem, e pela sociedade portuguesa, que visitam e escutam através de familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos? Exagero, dirão muitos. Ou equaciono a questão pelo seu lado mais negativo. A maioria das crianças portuguesas ou lusodescendentes que vivem em França não terá, ou já não terá, vergonha de suas origens portuguesas, diz-se. Mesmo quando a auto-estima é baixa, e os resultados escolares fracos. As crianças já ouvem falar de Portugal, ou já o conhecem, de uma outra forma, diz-se. É muito possível. Mas, chegada a Paris em 1997, para dirigir os serviços da Coordenação do Ensino de Português, rapidamente me dei conta, como acontece com todos os que para aqui vêm trabalhar, da imagem negativa de Portugal vigente nestas paragens gaulesas. Uma imagem cujo conteúdo é ainda predominantemente fornecido pelos estereotipos construídos com base na emigração maciça dos anos sessenta e setenta, sem nenhuma actualização posterior: país inteiramente rural, de pobreza e resignação extremas, do qual as pessoas têm que fugir para conseguir padrões de vida menos terceiro-mundistas.
É evidente que atrás desta imagem estão duas razões que, a merecer a vergonha de alguém, não seria certamente a das crianças portuguesas (ou lusodescendentes): o tradicional chauvinismo francês, com a correspondente tendência para ignorar tudo o que se passa fora da França, e a tendência geral de todos os grupos humanos para a formação de estereotipos sobre outros grupos humanos. Mas na imagem de Portugal que os franceses re-transmitem são também reconhecíveis os traços dessa imagem que foi delineada e exportada pela ideologia da ditadura salazarista, a ruralidade, a pobreza contentinha, a humildade, o fado imagem que até hoje perdura porque nós, portugueses, ainda não produzimos nenhuma outra sobre nós próprios. Esta última afirmação pode parecer injusta, e inexacta. Tem havido, ao longo dos últimos dez ou quinze anos. um esforço de divulgação da cultura portuguesa no estrangeiro, em particular da literatura. Esse esforço deu já alguns frutos. Paradoxalmente, ou sintomaticamente, só aos franceses tenho ouvido louvar a política portuguesa de divulgação cultural. Porque, evidentemente há franceses que conhecem a literatura, a história, a cultura portuguesas. Há cátedras de português em França, pesquisadores e especialistas. Mas, obviamente, todos estes sabedores, na maioria académicos, alguns outros jornalistas ou pessoas de intensa curiosidade, são uma minoria praticamente invisível no meio dos sessenta milhões de franceses, e os artigos ou livros que eles escrevem uma gota de água no oceano de palavras editadas em França. E, obviamente também, os esforços feitos para a divulgação da cultura portuguesa têm sido fragmentados (ressalvando algumas perspectivas mais globais, recentes e ainda episódicas) e, frequentemente, com tendências redutoras e passadistas.
Fragmentados porque não há ainda uma política comum aos diferentes organismos que representam ou apresentam Portugal no estrangeiro, muito menos a consciência da necessidade duma imagem global. Trabalham os organismos económicos e turísticos para um lado, os que assinam acordos internacionais em áreas educacionais, científicas e tecnológicas para outro, os culturais para um terceiro. Os culturais tendem a reduzir a cultura aos seus aspectos mais clássicos (em particular a literatura, como referi; e algum cinema. Nos últimos anos acrescentem-se alguns ciclos de conferências ou exposições sobre aspectos históricos e sociais, sobre arquitectura e, timidamente, um ou outro pintor ou músico. Por estas vias ainda estreitas os coloco entre aspas. O design em geral e o design de moda em particular, por exemplo, ainda não saíram da zona comercial do ICEP, ainda não foram promovidos a cultura o que é uma segunda forma de fragmentação, a qual produz, enfim. uma ausência de lugar onde se possa inserir e divulgar a cultura portuguesa actual na sua totalidade. Forma de fragmentação, e forma de passadismo também: damos de nós uma imagem antiquada com esta apresentação predominantemente clássica da nossa cultura». In Maria Isabel Barreno, Um Imaginário Europeu, Editorial Caminho, 2000, ISBN 978-972-211-365-8.

Cortesia de ECaminho/JDACT