quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A Paixão segundo Constança H. Maria Teresa Horta. «O cão apareceu uma tarde vindo não se sabe de onde. Estava simplesmente ali como se ali sempre tivesse estado. Começou a seguir Constança até à porta de casa»

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«(…) E voltava a ver, então, a imagem da mãe, na tarde em que esta fora ao colégio de freiras, no dia seguinte a ter abandonado a família, os cabelos de um louro difuso e surdo, o vulto flexível, o corpo magro e frágil no saia e casaco preto, justo, a saia travada como então se usava. As freiras chamaram Constança da porta da sala de aula num gesto hirto. Envergonhada porque todas a olhavam, levantou-se hesitante, acabando por tropeçar no pé que uma colega esticara para a fazer cair. Não correra para os braços da mãe, mas ficara com o coração a bater desordenado enquanto tentava escutar o que ela lhe explicava e não compreendia. Não se lembrava de nada do que a mãe lhe dissera. De nada. Constança foi ate à borda de água, a coberto do escuro da noite, a sentir as ondas frias, a areia mole e suspeita na escuridão, as farpas agudas dos búzios e das conchas partidas a enterrarem-se-lhe nos pés. Ali podia gritar à vontade, sem que ninguém a ouvisse. Voltava para casa já de madrugada, quando a luz começava a cobrear o céu, e sentava-se na cozinha à espera que o café aquecesse. Naqueles dias não conhecia outros prazeres para além do travo do café pela manhã, ou à noite depois do jantar. Havia ainda o sabor do sai que lambia nos braços, nas pernas e que bebia com o mar, o calor do sol e o gelo das ondas no corpo, o gosto da gordura no pão azedo e duro da véspera.
O cão apareceu uma tarde vindo não se sabe de onde. Estava simplesmente ali como se ali sempre tivesse estado. Começou a seguir Constança até à porta de casa e quando esta ia à aldeia comprar a manteiga, o pão, a carne, o leite, a fruta. Um dia deixou-o entrar. Era tímido e triste. Lavou-o debaixo da torneira do pátio e riu pela primeira vez desde que chegara, ao vê-lo sacudir-se assustado e sem respiração. À noite passou a ir dormir aos pés da cama dela e metia-se no mar quando Constança demorava a regressar; depois voltava para a areia e ficava à sua espera: as patas traseiras recolhidas e as da frente assentes na toalha molhada, as orelhas esticadas e tensas, tremendo um pouco. Constança nunca o viu cansado, ofegante, mesmo depois de horas a seu lado, expostos à impiedade de um sol extenuante. Não brincava nem corria com as crianças, era como se apenas ela existisse e os outros para ele fossem invisíveis.
Descrevê-lo-iam mais tarde nos jornais como sendo um cão grande, possante, quase negro, com uns olhos avermelhados e uns dentes certos e fortes. Era um cão sólido não obstante a sua extrema magreza. Constança dava-lhe os restos de comida que ele devorava esfomeado, mas apenas comendo das suas mãos ao lado do banco meio desconjuntado onde ela se equilibrava enquanto fumava, lia e bebia café à mesa depois do jantar, as sombras projectadas pela luz móve1 e insegura das velas e do candeeiro de petróleo trepando nos seus cabelos, nas paredes esboroadas. Às vezes as crianças adormeciam de cansaço ali mesmo, a cabeça entre os braços estendidos sobre a mesa. Pegava-lhes ao colo e ia deitá-las, os pés nus deslizando sem ruído no soalho irregular e até esburacado: aqui e ali uma ou duas tábuas soltas que estalavam baixo. Estendia-as sobre as cobertas grossas e ásperas ou nos lençóis das camas desmanchadas. Depois ia ver as estrelas lá fora, sentada no primeiro degrau da pequena escada estreita. O cão deitava-se aos seus pés no segundo degrau de pedra rachada pelo tempo e provavelmente pelo sol e pelo sal que os ventos arrastavam e deixavam tombar ali. O sal, primeiro como um vestígio apenas suspenso no ar invisível e em seguida caindo sobre as coisas, agarrando-se a elas tenaz, corroendo-as por dentro. Sem piedade». In Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT