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As bancas de madeira cedem sob o peso das caixas e das ânforas. O ar está cheio
de odores de especiarias, de essências perfumadas, de vapores de vinho, de
extractos de tinturaria. Colin sofre o assalto dos apregoadores que lhe fazem
sinal a chamá-lo, o agarram pelo braço, sem se deixarem impressionar pela sua
envergadura de gigante. Estuga o passo, abrindo caminho por entre a vaga dos
basbaques, deslizando por entre as tapeçarias e peças de estofado penduradas diante
das tendas. No corredor central, descortina uma banca cujos tons sóbrios
destoam no meio do turbilhão variegado das sedas. Junto à banca, clientes e
vendedores discutem em voz baixa, alheados dos gritos e dos risos que explodem
em redor. Uma tabuleta discreta anuncia em letras góticas: Casa Johann Fust e
Petrus Schoeffer, impressores-livreiros. Ao longo de prateleiras de madeira
toscamente cortada e improvisadamente encerada, acumulam-se, numa amálgama
desordenada, rolos de pergaminho e volumes com encadernações de pele. Ao fundo,
do lado de dentro do balcão, uma figura esbelta, num traje de fidalgo traçado e
remendado, coloca uma arca cheia de livros aos pés de um velho com a barba bem
cuidada. As mãos franzinas do ancião mergulham imediatamente no interior da
arca, pesquisando e escolhendo com destreza. Depois, com uma expressão céptica,
o livreiro soergue-se e oferece o seu preço. O fidalgo de poucos meios recusa,
visivelmente escandalizado. O velho não tuge nem muge. Passando por cima de floreados
inúteis, desata os cordões de uma bolsa de veludo, ciente de que um senhor
endividado não resiste durante muito tempo à vista de um punhado de moedas de
prata. Embaraçado pela desconsideração, o nobre embolsa a quantia sem se dignar
contá-la e gira rapidamente sobre os calcanhares, tentando reassumir o ar
altivo que convém à sua condição. Colin aproxima-se. É a primeira vez que aborda
aquele cujos passos segue desde há meses.
Estende-lhe a sua lista com a mão hesitante. O velho mercador relanceia-a
de início com negligência. Em seguida, num movimento de recuo acentuado, interrompe
a consulta do inventário e fita Colin por um demorado momento, incrédulo.
Com
uns quantos escudos que Guillaume Chartier lhe deu, Villon renova a sua indumentária.
Compra dois calções, duas camisas e uma capa forrada de pele de lontra, tudo de
um cinzento insípido que, durante muito tempo, poderá passar por limpo. Há esplêndidos
chapéus pendurados do tecto. Mas a insistência do vendedor revela-se inútil, François
não se desfará do seu velho gorro. Este é uma peça de feltro amarrotado, de cor
imprecisa, que talvez tenha sido outrora de um verde elegante, e com o rebordo triplo
repuxado para cima. Trata-se de um curioso tricórnio que sobreviveu a numerosos
desaires e tribulações. Cada uma das suas pregas, à maneira de uma ruga familiar,
evoca uma recordação. François recusa separar-se dele. É a única das suas posses
que o liga ainda ao seu passado. Agarra-se-lhe como a uma amarra. Antes de
regressar, permite-se fazer com que lhe cortem o cabelo à tigela à altura do pescoço,
o escanhoem e lhe estuquem grosseiramente as cavidades dentárias. O barbeiro pragueja
contra a grande feira que lhe rouba os clientes a golpes de imposturas e de
enfeites. Dizer que há até mesmo charlatães médicos que pretendem saber reparar
dentes melhor do que ele! De volta à estalagem, François sobe às águas-furtadas.
Entra num pequeno quarto mesquinhamente mobilado e que cheira a bafio. Encontra
Colin à sua espera, mantendo o equilíbrio sentado num banco corrido. Villon dá-lhe
uma palmada no ombro e puxa em seguida o seu alforge de debaixo da cama. Os livros
lá estão. Tudo o que há a fazer é esperar.
Por volta
do meio-dia, François ouve um crescendo de passos pesados que se aproximam,
entrecortados aqui e ali por imperiosos golpes de bengala. Colin levanta-se antes
ainda de o castão se fazer ouvir percutindo a madeira carcomida da porta. Executa
um esboço de vénia, indica à visita a única cadeira de espaldar, fazendo o
possível por se mostrar cortês. Fust. Johann Fust. Ourives e impressor em Mogúncia.
François, sentado sobre as pernas recolhidas e os joelhos afastados numa enxerga,
mostra-se menos acolhedor. Observa o recém-chegado com um ar desconfiado. A aparência
venerável do sexagenário, o seu aprumo altivo à maneira alemã, o seu traje irrepreensível
de burguês não o tranquilizam. O outro encara-o também com desconfiança, desconcertado
por um instante pelo aspecto pouco cativante do seu anfitrião. François
parece-lhe ter uma expressão insolente. Ou antes ardilosa. É um rapaz manifestamente
sob o efeito de uma tremenda ressaca. Seja como for, nem o brutamontes imponente
que fica encostado à porta nem aquele outro vagabundo maldesencardido, nenhum deles
parece intimidar o velho impressor. Não é a primeira vez que este faz negócio com
receptadores. Conhece-os de todas as espécies: padres despadrados, filhos de boas
famílias endividados, soldados que regressam das suas campanhas. Os melhores entre
todos os livros têm muitas vezes uma triste sorte. Caem nas mãos de patetas que
se sentem surpreendidos por haver quem possa perder tempo a lê-1os, e muito mais
ainda, por haver quem queira adquiri-los pagando à vista. E é assim que os conhecimentos
circulam e se difundem de furto em furto, de falência em herança. Para grande felicidade
dos livreiros. Villon sabe bem que o seu convidado fareja uma ocasião afortunada.
Todavia, joga observando as regras do jogo, deixando Fust crer que é o mais hábil,
ou, pelo menos, o mais entendido. François nunca fez gala do seu saber, e foi assim
que, em mais do que uma ocasião, apanhou mestres da universidade e juízes do tribunal
desprevenidos. Aprendeu a nunca se servir da sua erudição ostentando-a, mas
antes a dissimulá-la sob um ar de simplório, para só a ela recorrer no devido momento,
como de um golpe de espada secreto». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de
Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015,
ISBN 978-989-724-237-3.
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