Cortesia
de wikipedia
«Esboçando
um breve enquadramento historiográfico sobre o estudo das corporações de
ofícios, constatamos facilmente como se trata de um tema que foi votado a um
enorme desinteresse durante o século XIX e boa parte do XX, em grande medida
devido a preconceitos ideológicos e políticos: numa primeira fase, para os
seguidores do liberalismo económico, que triunfou na Europa de Oitocentos, o
modelo corporativo, associado ao Antigo Regime, era um alvo a abater; mais
tarde, a partir da década de 1930, com o advento de regimes totalitários que
defendiam um certo corporativismo social, a matéria, pela sua conotação,
tornou-se igualmente indesejada. Porém, a partir da década de 1960, como
sugeriu Maria Helena Coelho, a historiografia assumiu uma nova postura com o
impulso da Nouvelle Histoire,
desde logo pela renovação dos estudos de história económica, que se debruçaram
sobre a produção de bens, assim como da história social, que deitaram um novo
olhar sobre os seus produtores que, pelo menos desde o século XIII, viviam nas
cidades agrupados em associações profissionais. Nessa sequência, o principal
contributo foi-lhe prestado pelos estudos de história urbana, uma vez que foi com
o desvendar deste mundo que se trouxe à luz do dia o valor da produção
industrial e a importância dos mesteres na vida das cidades medievais. O tema
da organização do trabalho e dos trabalhadores foi progressivamente adquirindo
autonomia, tornando-se uma das matérias fracturantes da investigação histórica
a partir da década de 1980 e, sobretudo, de 1990. A
historiografia portuguesa acompanhou, grosso
modo, estas tendências universais. Por meados do século XX quase só
se contavam os estudos dos mesteres, de natureza institucional, de Lisboa,
Porto e Coimbra, respectivamente da autoria de Marcelo Caetano, Torquato Sousa
Soares e J. M. Teixeira Carvalho. Nos anos de 1960, a recuperação do tema dos
mesteirais pela história económica e social deixou a sua marca através de AH
Oliveira Marques, na sua inovadora obra A Sociedade Medieval Portuguesa: aspectos da vida quotidiana,
assim como nos seus artigos Mesteirais e Indústria na Idade Média, onde Jorge
Borges Macedo escreveu a entrada, de igual valor, Indústria na Idade Moderna.
No final da década seguinte, em 1978, destacou-se o trabalho de Maria José F.Tavares
que ousou perspectivar a importância dos mesteirais no contexto da crise de
1383. Apesar da publicação nos anos 80 de várias histórias gerais que
consagraram algumas páginas aos homens dos mesteres, conforme se verificou
também com o advento de estudos sobre algumas urbes, foi preciso esperar pela
década seguinte para lograr contributos significativos. De facto, nos anos de
1990 evidenciaram-se diferentes trabalhos que vieram fazer luz sobre os ofícios
medievais, como os de Maria Helena C. Coelho, em relação ao trabalho nas urbes,
de Ana Maria Rodrigues e Saul António Gomes, acerca do artesanato, e de Luís
Miguel Duarte, em redor da actividade mineira. Parecem essas sementes ter
frutificado no início do novo milénio com o interesse pelo estudo da produção
industrial e da organização dos mesteres, conforme mostram os trabalhos de Luís
Miguel Duarte, Maria da Conceição F. Ferreira e Amélia Polónia. Nessa esteira,
são sintomáticos os reflexos ao nível das teses académicas, como mostram os
recentes trabalhos de doutoramento de Arnaldo Sousa, intitulado Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média:
o Porto, c. 1320 – c. 1415 (Universidade do Minho, 2009), e o de
Joana Sequeira, designado Produção
Têxtil em Portugal nos finais da Idade Média (Universidade do Porto,
2012). Os mesteirais parecem, definitivamente, ganhar espaço na
investigação científica nacional.
É
perante este quadro historiográfico que Maria Ângela Beirante se propõe
acrescentar conhecimento com a obra Ao
serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora,
paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535). Como a autora
refere na introdução, o livro surgiu na sequência da descoberta (inesperada),
na Torre do Tombo, de um conjunto documental apenso a um caderno de capítulos
especiais da Covilhã, relativo às Cortes de João IV de 1645-1646. Trata-se do
regimento dos Vinte e Quatro dos Mesteres da vila da Covilhã, que data de 1535,
correspondente a uma reprodução dos Vinte e Quatro dos Mesteres da cidade de
Évora, de meados da centúria anterior. É em grande medida em torno desta
documentação, que comporta um conjunto de diplomas atestando os privilégios
alcançados pelos homens dos ofícios covilhanenses, acompanhados por vários
autos de eleição, que a autora assume como objectivo da obra uma dupla
abordagem das associações profissionais de Évora e da Covilhã nos séculos XV e
XVI: por um lado, uma observação de carácter institucional, permitindo
descortinar a importância política alcançada por aquelas organizações; por
outro lado, tendo em conta as suas similitudes e diferenças, compreender o papel
económico-social que desempenharam nas respectivas urbes.
Para
a persecução daqueles propósitos, Maria Ângela Beirante estruturou o seu livro,
a par da introdução e da conclusão, em três capítulos, seguidos de uma extensa
bibliografia e de um valioso apêndice documental, onde se encontra transcrito o
vasto conjunto documental recentemente encontrado do regimento dos Vinte e
Quatro. A organização das partes do livro pressupõe, desde logo, uma sequência
lógica, que nos apresenta antes a realidade das duas urbes para, depois, tratar
o regimento: no primeiro capítulo, intitulado Os mesteres de Évora na Idade
Média, a autora sugere uma observação dos trabalhos dos mesteirais
eborenses, cujo envolvimento na estrutura institucional do concelho nos finais
da medievalidade serviria de modelo aos mesteres da Covilhã; no segundo
capítulo, designado A Covilhã medieval, uma entidade urbana em ascensão,
propõe-se o acompanhamento da evolução da vila beirã desde a Reconquista
prestando especial atenção aos mesteres que a caracterizavam para, ao tempo do
infante Luís, se compreender a outorga do regimento dos Vinte e Quatro; no
terceiro e último capítulo, O Regimento dos Vinte e Quatro dos mesteres de
Évora e a sua adopção pelos mesteres da Covilhã, Maria Ângela Beirante
sugere um olhar sobre a fonte inédita, acompanhando numa primeira fase a
conquista precoce de direitos por parte dos mesteirais eborenses para,
posteriormente, gizar um quadro socioeconómico dos mesteirais da Covilhã que
com o seu empenho e o patrocínio do infante alcançaram em 1535, nas palavras da
autora, um estatuto de maioridade. Façamos uma análise, ainda que de
forma breve, aos resultados do trabalho por capítulos.
No
primeiro capítulo, a autora convida-nos a recuar à cidade eborense dos finais
da Idade Média tomando por fontes, com balizas entre os meados do século XIII e
os finais de Quatrocentos, milhares de documentos, essencialmente oriundos das
chancelarias régias ou do arquivo municipal daquela urbe. Maria Ângela Beirante
começa por identificar aqueles que, à luz da mentalidade medieva, estavam
destinados a executar o trabalho braçal, por oposição à oligarquia urbana,
conseguindo assim categorizar quase 3.000 homens por sectores de actividade,
com os seus cálculos a sugerirem desde logo um claro predomínio do ramo
secundário (70,4 %) sobre o primário (14,8 %) e o terciário (14,8%).
Procurando-se conhecer esta grande parcela de mesteirais, classificaram-se mais
de 2.000 por profissões, permitindo desvendar com base nas referências directas
dos documentos e nas marcas da toponímia a expressividade: por um lado, dos
seus ramos de ofícios, destacando-se a área transformadora do couro; por outro
lado, dos respectivos credos (cristãos, judeus e mouros), a partir dos quais,
pese a supremacia dos seguidores de Cristo, se conseguem estabelecer
culturalmente relações das minorias com determinados mesteres. A caracterização
dos homens dos ofícios de Évora é ainda completada com o estudo do regimento
tardo-medieval das procissões daquela urbe. Conforme nos é mostrado, aquele
regimento espelha, pela ordem do cortejo, a forma como a sociedade se via a si
mesma, com os mesteirais, abaixo da oligarquia citadina, a ocuparem
hierarquicamente os lugares segundo critérios de especialização e competência
técnica, clientela mais ou menos restrita, valor da matéria-prima trabalhada ou
oferta de mão-de-obra. Foi justamente perante uma elite urbana de oficiais,
paladina da garantia do abastecimento da urbe, em prol de uma ideia de bem
comum, que os mesteirais viram as suas actividades objecto de controlo e
regulação: primeiro, pelos almotacés, já datados do século XIII; depois, pela
magistratura dos vereadores, ali instituída durante o governo de Pedro I; por
fim, a partir do reinado seguinte, juntar-se-iam os vereadores, num claro
processo de complexificação administrativa local. Maria Ângela Beirante defende
que esta tendência aristocratizante do governo da urbe, com cada vez
mais olhos postos na vigilância dos mesteirais, conduziu à produção de completos
regulamentos que enquadravam o funcionamento das suas actividades. Porém, como
demonstra a autora, os mesteres mais estruturados conseguiam, ainda que
bastante condicionados pela oligarquia, ir tomando parte na elaboração desses
diplomas através dos seus vedores ou simples procuradores junto do poder
municipal, sinal das suas aspirações políticas. São disso exemplo as chamadas
Antigas Posturas, de finais do século XIV, e o Regimento da Cidade, das
primeiras décadas de Quatrocentos, cujos índices versam em boa medida sobre o
controlo de qualidade e o tabelamento de preços e salários dos mesteirais que,
como nos é dado a conhecer, alcançam sectores tão distintos como: couros,
alimentação, metais, têxteis, vestuário, construção, barro, espartaria e
cestaria, cera e sebo e água e combustíveis». In António Martins Costa, Recensão:
Maria Ângela Beirante. Ao serviço da
República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma
dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), Lisboa, Centro de Estudos
Históricos, 2014, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de
Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura, IEM,
Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro 2016, ISSN 1646-740X.
Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT