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«(…)
Mais tarde, quando quase enlouqueci em tormentos e me encontrei pesadamente
endividado para com Capodistria, passei a considerá-lo um companheiro menos
agradável; e, certa noite, Melissa, meio embriagada, encontrou-se sentada em
frente dele, diante do fogo, num tamborete baixo, tendo entre os dedos longos e
pensativos a letra que eu tinha assinado, com a simples palavra pago
escrita transversalmente, a tinta verde, numa caligrafia agressiva... São estas
recordações que fazem sofrer. Melissa explicou: Justine poderia ter pago a tua
dívida e isso não lhe causaria grande transtorno. Mas já basta que tenha o teu
desejo: não quero que tenha, também, a tua gratidão. E depois, embora te não
importes muito comigo, queria fazer alguma coisa por ti, e o sacrifício,
afinal, não foi demasiado grande. Pensava que não ficarias muito triste por eu
me deitar com ele. Não fizeste tu o mesmo por mim, quero dizer, não pediste
dinheiro a Justine para pagar a clínica, as radiografias e tudo o mais?
Mentiste-me a esse respeito mas eu descobri a verdade. Eu não podia mentir, eu
nunca minto. Toma a letra, rasga-a: mas não voltes a jogar com ele. Tu não te
podes ligar com um homem da sua espécie. E voltando a cara fez o simulacro de
cuspir, como fazem os Árabes.
Da
vida pública de Nessim, essas gigantescas e enfadonhas recepções, de início
frequentadas apenas por homens de negócios, mas que mais tarde deram pretexto a
tenebrosas conjuras políticas, não quero ocupar-me. Atravessando furtivamente o
vestíbulo a caminho do estúdio, detinha-me para examinar o grande escudo de
couro sobre a chaminé, onde se encontrava também um plano da mesa, para ver
quem tinha sido colocado à direita e à esquerda de Justine. Durante algum tempo
tentaram, gentilmente, fazer-me participar destas reuniões, mas eu pretextava
cansaço e sentia-me feliz por poder dispor do estúdio e da imensa biblioteca.
Mais tarde encontrávamo-nos como conspiradores e Justine lançava fora as
máscaras de alegria, tédio e petulância que arvorava em sociedade.
Desembaraçava-se dos sapatos e jogávamos cartas à luz da candeia. Quando ia
deitar-se lançava um olhar ao espelho e dizia para a sua imagem: não passas de
uma judia histérica e pretensiosa! O estabelecimento de Mnemjian, barbeiro,
natural da Babilónia, ficava na esquina da Rua Fouad com a Rua Nebi Daniel, e
era lá que todas as manhãs eu e Pombal nos encontrávamos reflectidos em frente
dos espelhos vizinhos. Erguiam-nos ao mesmo tempo nas cadeiras e cobriam-nos
com duas mortalhas brancas, como faraós mortos, para logo reaparecermos nos
espelhos, como dois insectos numa montra. Era um garoto negro quem nos prendia
as toalhas, enquanto o barbeiro ia misturando a espuma oleosa e perfumada numa
grande tigela vitoriana, antes de aplicá-la em pequenos toques hábeis nas
nossas faces. Depois de dar a primeira camada, deixava-nos de novo nas mãos do
garoto para ir afiar a navalha numa enorme língua de couro que pendia, ao fundo
da loja, no meio das fitas de papel mata-moscas. O pequeno Mnemjian é um anão
cujo olhar violeta não perdeu ainda a candura infantil. E, contudo, ele é o
arquivo da cidade. Se quisermos conhecer os ascendentes ou as posses de
qualquer pessoa, não há quem melhor nos informe; conta-nos todos os pormenores
enquanto afia a navalha, experimentando o fio nos pêlos hirsutos do antebraço.
E o que ele não souber depressa o descobre. E sabe tanto sobre os mortos como
sobre os vivos, posto que o hospital grego o utiliza para barbear e vestir as
suas vítimas, antes de as abandonar aos gatos-pingados; é uma tarefa que ele
desempenha com o zelo e o prazer de todos os da sua raça. O seu velho comércio
abrange os dois mundos, e algumas das suas melhores observações começam por
esta frase: como me dizia Fulano ao dar o último suspiro. Parece que tem muita
sorte com mulheres e consta que arredondou uma pequena fortuna à custa das suas
admiradoras. Mas há, também, as velhotas egípcias, mulheres e viúvas dos paxás,
que ele visita regularmente para lhes compor o penteado. Segundo ele, essas
senhoras já experimentaram tudo e, dando uma palmada na medonha giba que lhe
carrega as costas, acrescenta orgulhosamente: isto excita-as. Entre outras
coisas possui uma cigarreira de ouro, oferta de uma sua admiradora, onde guarda
uma colecção de mortalhas soltas. O seu grego é deficiente, mas enriquecido pôr
inesperadas imagens, e Pombal não consente que ele lhe fale em francês, embora
domine esta língua muito melhor. Está, presentemente, alcovitando para o meu
amigo, e sempre me admiram os súbitos assomos de poesia que ele põe na
descrição das suas protégées. Debruçado sobre a face lunar de Pombal,
dirá, por exemplo, enquanto a navalha começa a ranger sob a camada de espuma: tenho
uma coisa para si, uma coisa muito especial. Pombal surpreende o meu olhar no
espelho e volta rapidamente a cabeça com receio de que desatemos ambos a rir às
gargalhadas. Emite um grunhido prudente. Mnemjian eleva-se ligeiramente na
ponta dos pés e aproxima-se mais da orelha de Pombal, entortando os olhos». In
Lawrence
Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves,
1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
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