Cortesia
de wikipedia e jdact
«Este
fragmento aparece, em parte, em Um
Falcão no Punho, Lisboa, Relógio D’Água; a partir de agora, todas as
referências a esta obra remetem para esta edição), com data de 31 de Dezembro
de 1982; a mesma figura, Florbela, terá nesse livro o nome de Infausta e
surgirá junto de Aossê. Um Falcão
no Punho é o primeiro livro publicado (1985) por M.G. Llansol
onde a figura de Pessoa/Aossê é significativa; praticamente metade deste
primeiro Diário é lhe dedicado. Este fragmento de 18 de Dezembro de 1976 foi já
incluído, na sua totalidade, em Uma
Data em cada Mão. Livro de Horas I, surge aqui por ser o primeiro
momento correspondente à figura de Florbela / Infausta. Ver ainda a gestação do
nome de Infausta em Dezembro de 1982 e Janeiro de 1983».
18
de Dezembro de 1976
«À
noite. Vejo avançar uma rapariga de saias compridas e de cintura estreita, a
quem chamarei Florbela. Caminha por uma estrada incorruptível, ladeada de
laranjeiras da altura de sicómoros. Uma luz de fundo a acompanha, a antecede na
sua passagem, que deixa os que vêm às portas estupefactos. No rosto tem uma máscara,
e o corpo articulado de madeira parece ser destinado ao lançamento nas chamas.
Dentro de suas pupilas voam pombas que se afastam subindo para um céu com
nuvens esplendorosamente brancas. É Verão, ou uma estação semelhante,
desconhecida destes habitantes, mas não das pombas. Na curva do caminho está
plantada uma árvore, e as pombas dentro dos olhos circulam e afastam‑se do
pensamento em direcção às folhas. O sicómoro cai inteiro, a queda separa‑lhe o
tronco dos ramos. Os ramos
incendeiam‑se, recolhem os verdes na chama, o fogo não tem fumo. Florbela
aproxima‑se e sobe pelo tronco como por uma escada suspensa do alto deitado; lê
infinitamente durante dias e dias enviando mensagens por pombos-correio.
Consumido o fogo, desceu para o outro lado do caminho, eixo invisível da
rotação que avançava singularmente. A sua obra abrangia toda a espécie de trabalhos
preparatórios.
19
de Janeiro de 1977
«Fragmento
incluído, parcialmente e com diferenças significativas, em Um Falcão no Punho, com data de
26 de Novembro de 1982, onde já se refere a figura de Aossê. O fragmento
encontra‑se, na sua totalidade, em Uma
Data em cada Mão. Livro de Horas I,
aqui
retomado por ser o primeiro momento que anuncia a figura de Aossê, e também por
incluir elementos que serão retomados várias vezes, associados ao falcão: a
neve e a chama da vela»
«Sempre
escrevendo, sempre caminhando e divagando, está alguém para entrar. Repleto de
inocência, me olha sem me ver, e nem pés estão no seu caminho. Frágeis
obstáculos sobem na claridade da vela, que ilumina uma voz que recita, está a
seu lado com reflexão e medo. Quem está não é ser conhecido, nem homem, nem
animal, nem palavra, nem planta, nem ser que se exprima. É deus mortal e
desconhecido como eu, em silêncio me pede que o encontre e lhe faça companhia
na espera e no medo. Mas este medo é alegre e viaja, rodeado de areia encontra
o deserto, precipita‑se nele e procura o meu mundo até à água. Uma toalha de
espírito reúne as mil areias do deserto, e canto no azimute da vela, onde este
ser repousa, sem sono nem indolência, sorrindo de amor abrupto e doce. Quem ele
é me ama, e não está habituado à presença humana, se não for a de homem que
cheire a besta num campo de neve e terra. Quem ele é se submete a este quarto,
e trespassa o espaço na sua pequenez de pena». In Maria Gabriela Llansol, O Azul
Imperfeito, 1985, Assírio & Alvim, 2015, ISBN 978-972-371-850-8.
Cortesia de Assírio
& Alvim/JDACT