quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) O último Cabalista de Lisboa é, em si, um pouco um enigma. Porque terá sido escondido na cave de Ayaz Lugo? Porque será que não é referido pelos manuscritos judaicos seus contemporâneos? Nunca terá sido publicado? Dado o seu objectivo de alertar os cristãos-novos e os judeus para o permanente perigo que corriam na Europa, Berequias devia ter tentado seguramente dar-lhe a maior divulgação possível. Várias explicações me foram propostas por Ruth Pimentel, da Universidade de Paris, que mais tarde foram seguidas pela maior parte dos demais especialistas no campo da literatura sefardita medieval que consultei. Antes de mais nada, a depreciativa caracterização que Berequias faz dos cristãos-novos e o seu declarado apelo aos judeus e aos cristãos-novos para que abandonem a Europa haveria certamente de enfurecer os reis europeus e as autoridades religiosas, em particular os inquisidores de Portugal e de Espanha. Se ele levasse a sua obra para a Europa cristã, as cópias que fossem descobertas haveriam de ser eliminadas e queimadas. É também provável que a sua ardente defesa da imigração judaica haveria de irritar os dirigentes das enfraquecidas comunidades judaicas da região, tanto os agrupamentos secretos sefarditas em Portugal e em Espanha como as comunidades mais abertas dos asquenazins nos países do Norte da Europa. Estes judeus ou cristãos-novos, que tinham um interesse espiritual, emocional ou monetário para permanecer na Europa, poderiam igualmente suprimir os seus escritos. Para mais, o modo como Berequias trata questões como o sexo e o cisma entre cabalistas e autoridades rabínicas poderia ser considerado demasiado directo para que certos leitores o pudessem apreciar. Os seus escritos seriam certamente considerados tabu por muitos dirigentes judaicos conservadores que procuravam resistir à era do judeu secular que se aproximava. Apesar de me suscitar dúvidas, não posso deixar de referir uma outra teoria: é possível que o próprio Berequias tivesse suprimido os seus escritos; não só por não ter querido expor a perseguições os judeus secretos mencionados no texto, como também porque a excomunhão por alegada heresia não era nada de desconhecido. Apesar da veemente necessidade de avisar os judeus da Europa do destino que seu tio pressagiava, pode ter receado ver-se cortado da sua comunidade, como o foi outro judeu de origem portuguesa um século mais tarde, Baruch Espinosa. Talvez tenha feito circular em segredo cópias do seu livro, pedindo aos seus leitores que não revelassem o conteúdo nem mencionassem sequer a sua existência. Será talvez essa a razão por que não tem título. Outra razão, bem mais desencorajante: quem sabe se não o mataram ao tentar reentrar em Portugal e salvar a sua prima Reza? As cópias das suas obras que tivesse escrito e levado para a Ibéria teriam assim certamente perecido com ele. Apenas as que tinham ficado escondidas em Constantinopla teriam sobrevivido. Quanto ao esconderijo, o mais provável é que os manuscritos tivessem sido ocultados para os proteger durante o período nazi; a cobertura de cimento data desse tempo. Lembremo-nos que os cristãos-novos portugueses emigraram em massa ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, sobretudo para a Turquia, Grécia, Norte de África, Holanda e Itália, regiões que mais tarde se veriam ameaçadas ou ocupadas pelo Reich alemão. Por exemplo, nos finais do século XVI, como resultado da emigração dos cristãos-novos, só Constantinopla contava com uma comunidade judaica de 30 000 pessoas e 54 sinagogas, a maior da Europa. Durante a II Guerra Mundial, a maior parte dos judeus ibéricos que viviam na Grécia, Bulgária e Jugoslávia, 200 000 ou mais, foram presos e morreram nas câmaras de gás. Se considerarmos o apelo de Berequias para que os judeus e cristãos-novos deixassem os países cristãos, é interessante notar que a comunidade judaica na Turquia muçulmana contava com a protecção do Governo e escapou inteiramente à destruição. Apesar disso, o proprietário ou proprietários dos manuscritos de Berequias, talvez os pais de Lugo, teriam justamente receado o alastramento das perseguições à Turquia, tal como Berequias temera o alastramento da Inquisição (maldita) de Castela a Portugal quatro séculos antes. A Inquisição (maldita) foi definitivamente estabelecida em Portugal em 1536, cerca de 50 anos depois de ter sido criada em Espanha e apenas seis anos depois de Berequias ter completado o último dos seus manuscritos. Teria Ayaz Lugo sabido da existência dos manuscritos? No seu testamento não lhes faz referência. Possivelmente tinham sido escondidos pelos seus pais, sem que ele o tivesse sabido. Cabe-me agradecer, antes de mais, a Abraham Vital, que me ofereceu generosamente a sua casa e, posteriormente, me permitiu utilizar os textos de Berequias Zarco. Gostaria igualmente de manifestar o meu apreço à sua mulher, Miriam Rosencrantz Vital, que muitas vezes me valeu durante os meus tardios serões com um copo de vinho do Porto e os seus cuscuz caseiros. Este livro é publicado em memória de Berequias Zarco, família e amigos.

Nota histórica
Em Dezembro de 1496, quatro anos depois de expulsarem do seu reino todos os judeus, os soberanos de Espanha, Fernando e dona Isabel, convenceram o rei de Portugal, Manuel I, a fazer o mesmo. Em troca, os monarcas espanhóis concediam-lhe em casamento a mão de sua filha. Pouco antes de a ordem de expulsão ser aplicada, Manuel I, que não queria perder tão preciosos súbditos, decidiu converter os judeus portugueses. Em Março de 1497, mandou encerrar todos os portos de embarque e ordenou que se reunissem todos os judeus e os conduzissem à força à pia baptismal. Embora os relatos que chegaram até aos nossos dias refiram judeus que preferiram dar-se à morte e matar os filhos a converterem-se, a maior parte deles acabaram por se ver forçados a aceitar Jesus como o Messias. Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram. Mesmo assim, muitos dos novos cristãos persistiram nas suas crenças. Em segredo e ao preço de riscos enormes, continuaram a recitar as suas orações hebraicas e a praticar os seus rituais, sobretudo os do Sabbat e das festas judaicas. Um desses judeus clandestinos era Berequias Zarco, o narrador d’O último Cabalista de Lisboa. As circunstâncias que rodearam a descoberta do manuscrito de Zarco em Istambul, em 1990, constam de uma Nota do Autor. Dessa mesma nota constam igualmente algumas observações quanto ao estilo adoptado na transcrição do texto original. No entanto, os leitores deverão desde já ter presente que, ao preparar o trabalho para publicação, esforcei-me por preservar o tom extremamente natural e directo do autor». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT