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(…) Sentindo-se
infeliz, passou de guloso a glutão, de rechonchudo a gordo. Sobressaltava-se com
as gargalhadas dos outros, corava, fugia. A sua vergonha e o seu ridículo mais foram
aguçando a agressividade dos outros rapazinhos. Aos doze anos foi violado por
um grupo de colegas. Eram cinco ou seis, dois deles corpanzudos, de virilidade precoce.
Um buço escuro acentuava-lhes já a expressão estúpida, declarando seu desenvolvimento
praticamente completo: era mesmo aquilo que eles iriam ser, não havia mais esperança
de crescimento. Esses dois lideravam os outros, excitando-lhes mais a burrice do
que o sexo. Encurralaram num canto o rapazinho gordo, baixaram-lhe as calças e as
cuecas. O rapazinho gordo ficou aterrado, paralisado, incapaz de reagir. Dar-nos-ás
a cada um momento de prazer, disse um dos matulões enquanto lhe (…) o (…). E o rapazinho
gordo teve, nesse momento, uma erecção. Mais aumentou o gáudio dos outros, olha
pra ele, ele está a gostar, está a gostar. Um resto de dignidade se interpôs, se
ofendeu, o seu sexo murchou. Nada se consumou para ele, nesse dia, a não ser um
negro sentimento de culpa. E uma dúvida. Estás a ver o meu problema, disse ele,
muito baixo. Nunca contei isto a ninguém. E a primeira vez que sou capaz. Eu
senti prazer naquele momento, senti um desejo que só posso chamar perverso porque
eu próprio me comprazia ao ver-me reduzido a mero objecto de prazer dos outros.
Isto era apenas resultado do terrível estado de humilhação em que então vivia?
Ou sou, de
facto,
um homossexual? Até hoje, nunca consegui aproximar-me de nenhuma mulher, com receio
de ser um homossexual reprimido; e nunca me aproximei dos homens, porque eles me
lembram esse horrível sentimento de humilhação, de abjecção. És o meu primeiro amigo.
Contigo,
não sei porquê, sinto que posso estar completamente à vontade. Por isso te contei
tudo. Manuel ouviu, primeiro com interesse. Simpatizava com aquele seu colega de
emprego, gordo e calado, sempre perdido na contemplação de alguma coisa, e que ele
imaginava fazendo versos às escondidas de todos, talvez até de si próprio. Quando
percebeu o rumo dos acontecimentos, no passado do seu gordo confidente, o interesse
transformou-se em mal-estar; não lhe agradava ficar assim, inesperada e profundamente,
envolvido na vida de alguém. Depois veio o terror. O horror, quando sentiu uma súbita
erecção ao ouvir relatada a frase dar-nos-ás a cada um momento de prazer, relatada
a penetração que a acompanhou. Foi como se tivesse ficado repentinamente irmanado
com o seu gordo amigo, pior, como se intimamente tivessem partilhado uma experiência,
como se tivessem feito amor juntos. Manuel nunca tivera, até então, qualquer dúvida
sobre a sua sexualidade. Gostava bastante de si próprio, apreciava-se nas suas qualidades,
julgava conhecer todos os seus defeitos, arranjava namoradas sem dificuldade, tinha
êxito e prazer com elas. E agora chegava aquela confidência, aquela nojenta gota
de óleo. Era o que sentia: aquilo era como uma gota de óleo, que insidiosamente
se alastraria a toda a sua vida, contaminando-a.
E assim
se passou o futuro imediato de Manuel: olhares ansiosos sobre corpos de mulheres,
súbitas interrupções do acto de amor dizendo não sei o que tenho hoje, olhares de
soslaio para corpos de homens, interrogações sombrias, solitário, num bar, em casa,
com um copo de uísque na mão. E fugindo do gordo violado a sete pés, inventando
desculpas porque não gostava de ser malcriado nem agressivo». In
Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da Palavra,
Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho, 2008, ISBN 978-972-210-886-7.
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