quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «Tenho trinta e dois anos bem contados, meu bom Colin. Dos meus amores e dos meus duelos, só me restam cicatrizes»

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«(…) Enganas-te, Villon. Os teus versos ressoam nos botequins. A tua poesia vende-se à socapa por todo o lado. Murmuram-na nos corredores da corte. Recitam-na nos círculos dos letrados. Até os tribunais se regalam com ela! Colin abre o seu alforge. Saca de dentro dele um naco de salsichão seco que começa a cortar em finas rodelas com o punhal. François dá ao dente, seguindo os vaivéns de uma criada, considerando maneira de mobilar a sua noite. Um seio enrugado pende do alto do avental sebento da pobre. Tenho trinta e dois anos bem contados, meu bom Colin. Dos meus amores e dos meus duelos, só me restam cicatrizes. Dos meus furtos, nem uma moeda de escudo... Colin conhece demasiado bem o seu amigo para se fiar em semelhante declaração de ruína. Mas, daqui em diante, tenho isto! Villon estende-lhe a lista das obras escolhidas por Chartier para suscitar a cobiça de Johann Fust e o incitar a pôr as prensas das suas oficinas ao serviço da corte de França. Um rol de volumes provenientes dos arquivos reais, bem como das colecções secretas da diocese de Paris. A descrição das obras é deliberadamente sucinta, de maneira a que só um iniciado possa apreciar o seu valor incalculável. Colin percorre rapidamente o enfadonho inventário, sem nada detectar nele que possa justificar tanta exaltação. Mais um trago?
François enche os copos e levanta a seguir o seu muito alto, em triunfo, como um cálice. Colin lança um olhar embaraçado pelas mesas vizinhas. Identifica sem dificuldade os estrangeiros que chegaram para a feira, vestidos com gibões de malha espessa ou capas de lã, com gorras e chapéus de corte extravagante. Venham da Flandres ou de Saragoça, sejam salteadores de estrada, clérigos ou mercadores, todos eles exibem ao flanco a sua moca ou a sua adaga, bem visível. Outras armas maldissimuladas, incham a costura da veste, entumecem o cano da bota, alçam o pano da capa. Pouco à vontade, os camponeses apinham-se, sussurrando no seu falar local, espreitando pelo canto do olho. Só o estalajadeiro se mostra afável, enfiando jovialmente no bolso moedas soantes e vibrantes de várias paragens. Uma criada meneia as ancas por entre as mesas cheias, tentando espevitar os clientes. Colin  brinda sem grande convicção, examinando uma vez mais a folha de pergaminho. Villon bate com o punho na mesa e aponta a sala abarrotada. É o destino deles que tens nas tuas mãos, malandro?
Os dois homens passam a noite a beber. François tenta explicar a Colin a verdadeira razão da sua missão. Em vão. Colin não vê de que modo uma lista de alfarrábios poderá mudar a sorte de toda essa gente que os rodeia, camponeses, vendeiros, mercenários. Bem pode esquadrinhar o inventário, decifrar os títulos das obras, que de nada lhe serve. Sente-se ainda mais confuso dado que François não para de lhe repetir que não são aqueles textos que importam. Foram escolhidos por Chartier, e pelo rei, a fim de saciarem as suas ambições do momento. Não, são os próprios livros, feitos de papel ou de pele de animais, que constituem um extraordinário arsenal. Mas para que guerra? A taberna esvazia-se pouco a pouco. Colin recebe docilmente as últimas instruções que François lhe transmite, e sai depois, para se haver com a morrinha. Ao fechar a porta, entrevê o seu compadre entretido a assediar com os olhos a criada que gargalha como uma cabra.
A praça do mercado desperta, embrulhada na bruma espessa da manhã. Sons de início tímidos, esparsos, debicam alguns grãos de silêncio. Os chocalhos dançam pendurados do pescoço dos animais, a brita range debaixo das rodas das carroças, a brisa agita as quinquilharias e os toldos. Os homens não falam, ainda entorpecidos, arregalando olhos pesados cujas pupilas agarram raros pontos de cor: uma fita vermelha, um chapéu verde, uma peça de pano púrpura. Vendedores ambulantes e mercadores apressam-se às dúzias pelas ruelas que levam ao campo da feira. Em breve, farão mover-se operários e mulas, mercenários e guardas de escolta. Em breve, o alarido dos regateios e o tilintar das moedas ressoarão por todo o lado. Esta manhã, começa uma nova era, uma era em que tudo passará a ser negociável». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT