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O Comandante, apesar da sua longa experiência, ainda não se tinha recomposto
completamente da missa. Todas? Viteri repetiu a ordem com a voz a denotar uma
determinação que não estava aberta a discussão. Pousou os olhos idosos directamente
em Raber. Neste momento, não eram as janelas robustas de uma alma inabalável
que todos conheciam. Os olhos castanhos do cardeal estavam preocupados, com os
sulcos profundos dos cantos a parecerem trincheiras, como se a gravidade da sua
ordem tivesse afectado na mesma medida autor e recipiente. A própria expressão
do Oberst Raber só denunciou surpresa durante uma fração de segundo.
Tinha tido demasiados anos de treino para permitir que se prolongasse mais
tempo. Mas no seu íntimo, a surpresa do comandante era avassaladora. Em todas
as suas décadas de serviço, nunca tinha sido emitida tal ordem. Toda a basílica?
A Basílica de São Pedro era uma estrutura vasta. Construída de acordo com os
padrões engrandecedores de um papa que tinha inadvertidamente promovido a
Reforma Protestante ao tentar pagá-la vendendo indulgências às massas;
estendia-se por mais de dois hectares, com mais de 15000 metros quadrados de
superfície e um dos maiores recintos de culto do planeta, onde o percurso desde
a porta principal até à capela-mor se prolonga por mais de 200 metros sob tectos
majestosos e dourados. E embora algumas partes da basílica tivessem estado
ocasionalmente fechadas ao público e a clérigos menores, era inaudito que todo
o complexo estivesse fechado. A Basílica de São Pedro era o coração da
cristandade, a sede do reino de Deus na Terra, e as suas portas não deviam
fechar-se até ao fim dos tempos. Não, respondeu o cardeai Viteri, da basílica
não.
Apesar
de se esforçar por ser estoico, Raber sentia a expressão da sua cara mudar. Até
a lendária compostura suíça tinha os seus limites. Se o cardeal Secretário de
Estado não se estava a referir à basílica, então Viteri só podia querer dirigir
a sua ordem para uma coisa. Vossa Eminência quer dizer o..., a voz do Raber
sumiu-se. Todos os portões. Todas as ruas. Todas as entradas, confirmou o cardeal
Viteri. Colocou uma mão envelhecida no ombro do comandante com o anel episcopal
dourado a tremeluzir debaixo da luz alaranjada da basílica. A mão de Viteri era
tão firme como o seu olhar. Tira o resto das pessoas daqui, disse ele fazendo
um gesto indicando os fiéis e turistas que ainda enchiam a igreja, e depois fecha
o Vaticano.
Polizia
di Stato, 16.ª esquadra de Monteverde. Roma: 9h 34
A 16.ª
esquadra de Monteverde da Polizia di Stato italiana é um edifício pouco
inspirador, localizado no meio de um bloco residencial numa zona urbana perto
do centro da cidade. A maior parte das pessoas passa por lá sem se aperceber de
que a fachada discreta esconde um dos departamentos de Polícia mais activos de
Roma, com os seus membros a trabalharem concertados com os Carabinieri e a
Guardia di Finanza para completar a infraestrutura local do fantasticamente
complexo sistema de policiamento nacional de Itália. Nas entranhas da esquadra,
num gabinete ainda menos inspirador do que o edifício onde se situa, a inspetora
Gabriella Fierro dá um longo suspiro de frustração. A secretária metálica a que
se encontrava sentada era produzida em série, e dizer que privilegiava a
funcionalidade sobre a forma seria um eufemismo espectacular. Era feia, tal
como o eram as prateleiras metálicas tortas numa das paredes e os dois armários
metálicos noutra, todos parecendo que estavam gastos e exaustos desde o dia em
que foram feitos. Não havia janelas, e Gabriella nunca se tinha dado ao
trabalho de decorar as paredes com placas comemorativas ou pósteres. Nunca
tinha valido o esforço. Ninguém vinha ter com a inspetora Fierro para ser
impressionado com credenciais. Na verdade, poucos entravam sequer no seu
gabinete. E o que era feio era feio, mesmo que se lhe pusesse um póster por cima.
Gabriella
olhou para baixo para o seu minúsculo relógio Bulova, um dos poucos luxos na
sua vida bastante desinteressante. O estômago estava a dar horas. Para as
pessoas normais faltavam poucas horas para o almoço, mas ela sabia que não
teria essa sorte. Hoje não. Se tivesse tempo para almoçar de todo, isso teria
de acontecer muito mais tarde. Estava enterrada debaixo de uma montanha de
papelada que faria o próprio Atlas encolher-se, e sempre que conseguia diminuí-lo
um pouco, o seu repugnante supervisor, o comissário-adjunto Enzo D’António,
encarregava-se de reconstituir o monte. Ia ser um dia muito, muito longo.
Gabriella Fierro estava na Polizia di Stato há mais de quatro anos, e todos
eles tinham sido uma batalha constante com o chefe. Quando inicialmente saiu do
estatuto de cadete, D’Antonio tinha-a mantido no posto mais baixo de agente
muito mais tempo do que teria sido normal. Durante uns tempos, Gabriella questionou-se
sobre se se ia reformar da Polícia no mesmo posto com o qual tinha entrado, mas
a determinada altura, D’Antonio concedera-lhe a promoção, forçado a isso, quando
um caso que ela tinha conduzido dois anos antes tinha feito manchetes nos
órgãos de comunicação nacionais. Ele tinha-lhe dado esse processo como um caso
menor e uma perda de tempo, um presente envenenado destinado a humilhá-la e
frustrá-la. Mas, às vezes, os presentes surpreendem quem os dá. O caso, afinal,
esteve nas parangonas dos jornais: escândalos financeiros na Igreja e um cardeal
assassinado do outro lado do Atlântico. O seu supervisor não tinha conseguido
impedir que ela mostrasse o seu mérito com o caso, mas tinha-lho reconhecido de
má vontade». In Tom Fox, Dominus, 2015, tradução de Ângelo Santana, Topseller, 20/20
Editora, ISBN 978-989-883-913-8.
Cortesia de
Topseller/20/20 Editora/JDACT