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Estava apenas a pensar que, se Joana d’Arc se tivesse cruzado convosco, ter-vos-íeis
juntado a ela sem hesitar. E teria mesmo. Beatriz ergueu-se, de um pulo. Teria
atirado os meus livros e bordados pela janela e saltado para o primeiro cavalo livre
que encontrasse. Como deve ser maravilhoso fazer o que se quiser, lutar pelo
nosso país e viver só com o céu por tecto e com a terra por cama! Exagerais, Beatriz.
As cruzadas envolvem mais sofrimentos do que nos conta a História. Talvez, mas
pelo menos estaríamos a fazer qualquer coisa! Olhei-lhe para as mãos, que
estavam cerradas como se ela estivesse a empunhar uma arma. Com essas vossas enormes
mãos, sem dúvida que conseguiríeis manejar uma espada, gracejei. Ela ergueu o queixo.
Sois vós a princesa e não eu. Seríeis vós a empunhar a espada. Senti-me cheia
de frio, como se o dia tivesse dado lugar à noite, sem aviso. Estremeci. Não creio
que alguma vez conseguisse liderar um exército retorqui em voz baixa. Deve ser terrível
vermos os nossos compatriotas esquartejados pelos nossos inimigos e sabermos
que a nossa própria morte poderá vir a todo o instante. Ergui a mão, antecipando-me
ao protesto de Beatriz. Tão-pouco concordo que citeis Joana d’Arc como um exemplo
a seguir. Ela lutou pelo seu príncipe e isso só lhe valeu uma morte cruel. Não
desejaria tal destino a ninguém. Decerto não o quero para mim. por aborrecido que
isso vos pareça, prefiro casar e ter filhos, como é o meu dever. Beatriz
lançou-me um olhar penetrante. O dever é para os fracos. Não me digais que nunca
pusestes tudo isso em causa. Devorastes aquele livro dos reis nas cruzadas que está
na nossa biblioteca como se fosse maçapão. Forcei uma risada. Sois incorrigível.
Nesse momento chegaram Alfonso e don Chacón, que parecia muito aborrecido. Vossa
Alteza, minha Senhora de Bobadilla, não devíeis ter fugido a galope daquela maneira.
Poderíeis ter-vos magoado, ou pior. Quem sabe o que espreita nestes campos ao anoitecer?
Apercebi-me do medo na sua voz. Embora o rei Henrique tivesse entendido por bem
deixar-nos em paz em Arévalo, isolados da corte, a sua sombra pairava nas
nossas vidas. A ameaça de ser raptada era um risco a que há muito me habituara,
tanto que passara a ignorá-lo. Mas Chacón era devotado à nossa proteção e relava
muito a sério qualquer possibilidade de ameaça.
Perdoai-me,
retorqui. Foi um erro. Não sei o que me deu. O que quer que tenha sido, estou
impressionado, disse Alfonso. Quem vos teria imaginado uma tal amazona, querida
irmã? Eu, uma amazona? De maneira nenhuma. Apenas quis testar o Canela. Ele
saiu-se bem, não achais? É bem mais veloz do que o seu tamanho sugere. Alfonso
abriu um sorriso. Pois é. E sim, de facto, saístes-vos muito bem. E agora temos
de regressar, disse Chacón. Já é quase noite. Vinde, iremos pela estrada principal.
E, desta vez, nada de arrancar a galope. Fui claro? De novo a cavalo, eu e Beatriz
seguimos o meu irmão e Chacón, crepúsculo adentro. Aliviada, percebi que
Beatriz resolvera não fazer das suas, seguindo recatadamente ao meu lado. Mas quando
íamos chegando a Arévalo, com o céu tingido de listas em tons de coral, não pude
evitar recordar a nossa conversa e, contra vontade, perguntar-me como seria ser-se
um homem.
A torre
de menagem estava deserta, o que era anormal àquela hora, e, mal entrámos no salão
de banquete e vimos que a comprida e lascada mesa central ainda não fora posta
para a refeição da noite, pressenti que algo se passava. Alfonso e Chacón estavam
nos estábulos a desselar e a escovar os cavalos. Enquanto Beatriz me despia o manto,
olhei para a lareira; nem tão-pouco fora acesa. A única luz era a dos archotes na
parede, que iam cuspindo fagulhas. Onde estará toda a gente?, perguntei, massajando
as mãos esfoladas pelas rédeas e tentando soar indiferente. Julguei que doña Clara
fosse estar na torre de menagem à nossa espera, com a sua chibata e as suas reprimendas.
Também eu. Beatriz franziu o sobrolho. Está tudo calmo demais. Perguntei-me se a
minha mãe teria adoecido de novo enquanto andáramos a cavalgar. Senti uma pontada
de culpa. Deveria ter ficado ali, em vez de sair de forma tão súbita, sem dizer
uma palavra. A minha tutora entrou e veio apressadamente ter connosco. Aí vem ela,
sussurrou Beatriz, mas eu percebi de imediato que a preocupação no rosto da minha
aia não tinha a ver connosco. Se doña Clara ficara zangada com a nossa fuga, algo
mais importante acabara entretanto por se sobrepor a isso. Até que enfim, disse
ela, sem a severidade do costume. Onde vos metestes? Sua Alteza, a vossa mãe, tem
estado a perguntar por vós. A minha mãe estivera a perguntar por mim. O meu coração
acelerou e, como se de longe, ouvi Beatriz dizer: estávamos com Sua Alteza, o príncipe.
Não vos lembrais, doña Clara? Dissemos que íamos...» In CW Gortner, O Juramento da Rainha, Isabel,
a Católica, 2012, tradução de Miguel Romeira, Topseller, 20/20 Editores, 2013,
ISBN 978-9879-862-627-1.
Cortesia de
Topseller/JDACT