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Já é
noite. 1579, Domingo
«Já
é noite, murmurou o ancião na varanda de mármore. O sol vai mergulhar por
detrás da Suleimania; a hora em que os janízaros sobem até às tabernas para
fumarem e embebedarem-se ruidosamente. Como todos os dias o meu jasmineiro
roubar-me-á uma vez mais a última luz, a mais fulva. Avisto apenas, na ponta do
Topkapi, os telhados brancos do harém e, sob as árvores obscurecidas, os
clarões das primeiras tochas. Mal se distinguem, ao longe, no Bósforo, as
lanternas daquela embarcação tardia que se faz ao mar. Eterno navio, semelhante
a todos os que nos trouxeram, a Senhora e a mim, de uma madrugada de Lisboa, há
mais de quarenta anos, até este horizonte onde ela desapareceu. Nunca acreditei
que ela pudesse fugir sozinha numa nau, sem mim. Eu, duque de Naxos, príncipe
judeu do Império Otomano, eu, seu sobrinho, seu principal apoio..., ela
abandonou-me. Durante toda a nossa vida combatemos os imperadores e os reis do
Ocidente; atravessamos juntos a Europa inteira e nada nem ninguém pôde
separar-nos, nem os príncipes, nem os papas, nem os rabis! Mas a Senhora era
como o Mediterrâneo, incerta, violenta, agitada por imprevisíveis aragens. E
quando o vento de Agosto se levantava no seu coração nada podia parar a
tempestade. Desde o dia em que ela me deixou, espreito todas as noites aquela
vela como se fosse ainda a mesma... E contudo sei que ela morreu, o Esplendor
do exílio e a Flor luminosa dos marranos, a Estrela da manhã, aquela que, qual
Ester ou Judite, foi um homem pela coragem e a mãe de todos os judeus que
quiseram seguir a via do Senhor... Foi isso que nos cantaram os piedosos
rabinos de Istambul, quando nos chegou a notícia da sua morte. Que tenho eu a
ver com este palácio do Belvedere por onde arrasto a minha memória, a minha
esposa muda e a dor que me atormenta os rins? Vai ser preciso render-me à
evidência e deixar aqui este magro despojo que já nem consigo aquecer. Será em
breve; as imagens precipitam-se como pássaros desorientados. Não voltar a ver
essas naus. Dir-se-ia que traçaram sulcos nas palmas das minhas mãos. Na linha
do coração, profundamente, um pequeno caíque balançando sobre as águas do Corno
de Ouro... Ah! Não quero ver! Quero cerrar os punhos e mantê-los assim, como
sempre estiveram. Devo ter passado metade da minha vida no mar, de punhos
cerrados.
Todos
hão-de se regozijar quando eu morrer. Agora que já não sou nada, ouço-os daqui,
esses embaixadores do Ocidente junto da Sublime Porta, ouço-os a escarnecer, é
fácil agora. O judeu Josef Nasi sou eu. O sobrinho da Senhora, o conselheiro
secreto das horas más da Europa, o verdugo e ladrão dos reis, esse Judas sou
eu, este velho fraco e com frio. Sim, ela e eu combatemo-los. Todos. Mas nunca
ergui a espada contra nenhum homem. É claro que se tivesse sido preciso
tê-lo-ia feito sem hesitar; uma ordem de Beatriz teria bastado, uma só palavra,
um só gesto e eu teria obedecido logo. Sempre me submeti aos seus desejos.
Ninguém podia resistir-lhe; nunca ninguém o conseguiu, à excepção de um rabino
obstinado que lhe fez frente tremendo dos pés à cabeça. Ela inspirava a todos,
e mesmo a ele, respeito e veneração. A não ser assim, como teria ela merecido o
nome que lhe dão ainda hoje os judeus do Mediterrâneo, Senhora? A rainha. A
minha, e ninguém sabe. Vou morrer e ninguém sabe nada de nós dois! Ela
permanecerá para a eternidade a Senhora de um povo inteiro no exílio, e ninguém
saberá que ela foi, acima de tudo, o meu céu e os meus infernos! Dona Mendes,
também chamada Gracia Nasi ou, ainda, a Senhora. Quando a conheci chamava-se
Beatriz.
1510-1536.
a menina da maçã vermelha
(Infância
de Beatriz Luna e João Miguez, seu sobrinho; o regresso dos Conquistadores ao
porto de Lisboa; o dia da carraca; casamento de Beatriz e Francisco Mendes; os
progressos da Inquisição em Portugal; primeiras perseguições aos judeus
conversos; morte de Francisco; a família Mendes foge para Londres)
Nós,
os marranos vindos da Península Ibérica, nunca tivemos o direito de usar os
nossos nomes judeus. Tínhamos de escolher entre partir ou mudar de identidade.
Quantos nomes usamos nós, quantas vezes os mudamos... Perpétuos mascarados, eis
o que somos. Em Portugal, era João Miguez, na Inglaterra, em Veneza, em
Ferrara, John Miquez, Juan Micquez ou, ainda, Juan Micas, como queiram; aqui,
Yusuf Nasi... E ela, como lhe chamarão os vindouros? Gracia, Hannah ou Beatriz?
A Senhora nasceu em Portugal, em 1510, sob o nome cristianíssimo de Beatriz
Luna. Eu vim ao mundo cinco anos mais tarde; era filho de seu irmão mais velho,
que tinha, por seu lado, tomado o nome de Miguez. O nosso verdadeiro nome era
Nasi, que quer dizer príncipe. Pobres de nós! Nessa época já não éramos
príncipes, mas proscritos disfarçados. Quando os reis espanhóis decidiram
expulsar o nosso povo, a Senhora não era nascida. Mas a história dessa
calamidade marcou, desde o nascimento, os filhos dos primeiros exilados. Ah! A
Queda do Templo pode ser a nossa chaga sempre aberta, mas não creio que o
primeiro Êxodo tenha sido pior que o de 1492. Os que deixaram o solo da
Palestina, nossa pátria perdida, puderam acreditar, durante toda a vida, que
voltariam a ver Jerusalém e que reconstruiriam o templo destruído; mas, em
1492, quando a religião judaica foi proibida, quando os nossos antepassados
tiveram de abandonar a Espanha e depois Portugal, o exílio era absoluto, e o
povo judeu estava condenado a fugir. Durante quinze longos séculos os nossos
antepassados tinham vivido em paz sob o domínio dos mouros; tinham aconselhado
príncipes, e até reis cristãos eles tinham medicado; o meu próprio pai usava
ainda o título de médico do rei. Foi um dos nossos, o pouco clarividente Abraão
Sénior, Grande Rabino de Castela, quem favoreceu o sinistro casamento de
Fernando e Isabel, os Reis Mui Católicos, a quem devemos toda a nossa desgraça.
Fizeram da Inquisição (maldita) um tribunal real
que começou a perseguir-nos». In Catherine Clément, A Senhora, Edições
ASA, 1994, ISBN 978-972-411-371-5.
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