quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Nó de Sangue. Agustín Sánchez Vidal. «Fizeram bem proibi-la no ano passado. Não só ofendia Espanha mas a humanidade inteira e o senso comum»

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A mestiça. Madrid. 1780
«(…) Quem é?,perguntou a Frasquita. Sabe-se muito pouco acerca dela, há grande cuidado com tudo o que envolve a sua visita. Só sei o nome dela, Umina, e que é uma princesa inca. Pelos vistos muito rica. O que está ela a fazer aqui, tão longe da sua terra? Talvez tenha vindo a Espanha defender as suas reclamações, tratar de papeladas e provas jurídicas. Sei lá, documentos desse tipo. Pois. E o Floridablanca aparece com ela em público na estreia de uma comédia sobre os irmãos Pizarros e a conquista do Peru. É mais ou menos isso. A mestiça era seguida por um índio forte e de grande estatura, fardado de lacaio para a ocasião, com a libré a condizer com o trajo da ama, que consistia em capa de arminho aberta. deixando ver um esplêndido vestido de veludo vermelho. O tecido era ajustado ao corpo por meio de duas filas de esmeraldas, à maneira de botões, subindo até ao generoso decote, um vislumbre de pele morena prolongado pelos ombros quase nus, terminando no grácil pescoço. Nela, o que mais fascinava Sebastián era a sua maneira de se mover, projectando o peito e a cara. Num outro momento anterior da sua vida, era isso que mais lhe dizia numa mulher. Nunca se cansava, nesses tempos, de admirar o brio com que se movimentavam as costureirinhas e as majas madrilenas. Era como se aquela energia desenvolvida ao caminharem movesse a Terra, fazendo-a girar sobre o seu eixo. Pareciam ser elas que, ao saírem todos os dias para a rua, davam um desígnio ao mundo. Tudo isso foi antes de lhe suceder aquela desgraça. Agora, tanto tempo depois, voltava-lhe essa mesma sensação. Perguntava a si mesmo se os seus olhos, cravados em Umina, não deixariam transparecer demasiado as suas ânsias. Estava na primeira fila, e a jovem, ao passar quase roçando por ele, aguentou-lhe o olhar, como se tivesse visto um fantasma ou um velho conhecido. Que descarada!, disse Frasquita quando todo o séquito de Floridablanca passou. Quando Sebastián a levava para o seu camarote, Frasquita voltou-se para ele e avisou-o: tem cuidado. Ainda não estás preparado para uma mulher assim. O que queres dizer com isso? É demasiado perigosa. Agora estás a vê-la muito ataviada e feminil, mas acho que é uma extraordinária amazona quando sai para o monte. No outro dia levaram-na a uma caçada e por pouco não deixava nenhuma peça de caça para o Floridablanca. Com ela é tiro e queda, ao que parece. O camarote de Frasquita ficava mesmo sobre o palco. Depois de a ajudar a instalar-se, o engenheiro tratou de localizar a mestiça. Estava na galeria central, ao pé do secretário de Estado, que ia presidir à função. Do outro lado, Onofre. E, atrás, o gigantesco lacaio índio, que acabava de tirar dos ombros da ama a capa de arminho. Nesse momento soou uma estrepitosa abertura de timbales e clarins enquanto subia o pano. Frasquita só teve tempo de lhe perguntar: o teu pai deu-te O Nó Górdio a ler? Não, já. tinha entregado a última cópia. Cheguei ontem a Madrid. Vim a mata-cavalos, porque fiquei preocupado com a mensagem que mandou. Ele tem receio, quer que eu o ajude, o ponha ao corrente desta representação. Pelo que me contou Onofre, a comédia baseia-se na trilogia de Tirso de Molina sobre os Pizarros. Acho que o meu pai ajudou o director da companhia a resumir a trilogia numa só peça. Deveriam adaptar de preferência El Burlador de Sevilha (o sedutor ou libertino de Sevilha), com dom Juan Tenorio. Essa sim, daria dinheiro. Já me conformo se os índios não forem de opereta como em Los Incas de Marmontel. Fizeram bem proibi-la no ano passado. Não só ofendia Espanha mas a humanidade inteira e o senso comum.
Calaram-se para ouvirem as personagens. Os diálogos iniciais informavam sobre os antecedentes do caso, em meados do século XVI. Falava-se do estado em que ficara o Peru após a morte de Francisco Pizarro e as conspirações do seu irmão Gonzalo. Este era interpretado pela voz cantante de Cañizares, o director da companhia. Dirigia-se à sua sobrinha Francisca, a primeira mestiça, filha da união do seu falecido irmão com uma nobre da casa real inca. Gonzalo invocava a vontade dos seus partidários que o incitavam a casar-se com ela para serem ambos coroados reis do Peru e tornarem o país independente do imperador Carlos V. Nesse sentido, mencionava Alexandre Magno, traçando o paralelismo que justificava o título de O Nó Górdio. No entanto, propunha-se continuar fiel à Coroa de Espanha. Sebastián pensou que, de facto, era essa a mensagem que convinha fazer passar agora, dois séculos depois, quando o Peru andava de novo conturbado e os pretendentes se atarefavam pela corte, como aquela mestiça. Agora entendo por que razão Floridablanca mandou fazer esta adaptação por intermédio de Onofre, disse Sebastián de si para si. Mas por que raio o meu pai aceitou ajudar o Cañizares embora às escondidas? Para que se mete nestas embrulhadas?
Desviando os olhos do palco, observou Umina com o óculo de alcance e o interesse com que a jovem seguia a representação. Voltou de novo à comédia quando sentiu o silêncio absoluto que reinava entre o público. Não era para menos. Cañizares, no papel de Gonzalo Pizarro, falava do tesouro dos Incas. Recordava que estes o tinham escondido em 1533, depois da entrada do seu irmão no Peru. E a sua sobrinha Francisca contracenava com ele dando-lhe réplica no seu papel de diabo tentador. Instava-o a unir forças com ela, casando-se e instaurando ambos uma dinastia própria, recuperando as fabulosas riquezas». In Agustín Sánchez Vidal, Nó de Sangue, 2008, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-234-291-9.

Cortesia de EPresença/JDACT