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«(…)
Desde as minhas mais remotas lembranças Janice sempre fora assim: insaciável.
Quando éramos pequenas, a tia Rose costumava rir, encantada, e, exclamar: se
essa menina estivesse numa prisão feita de biscoitos, fugiria de lá abrindo
caminho às dentadas, como se a voracidade de Janice fosse motivo de orgulho.
Mas, afinal, a tia Rose estava no topo da cadeia alimentar e, ao contrário de
mim, não tinha nada a temer. Até onde eu podia me lembrar, Janice sempre havia
conseguido descobrir os meus doces, não importava onde eu os escondesse, e as
manhãs de Páscoa em nossa família eram desagradáveis, meio brutas e curtas.
Chegavam inevitavelmente ao clímax quando Umberto a repreendia por ter roubado
a minha parte de ovos de Páscoa, e Janice, com os dentes cheios de chocolate,
respondia sibilando, debaixo da cama, que ele não era seu pai e não lhe podia dizer
o que fazer. O frustrante era que o seu físico não a denunciava. Sua pele
recusava-se obstinadamente a revelar os seus segredos; era lisa como a
cobertura acetinada de um bolo de noiva, as feições moldadas com a mesma
delicadeza das frutinhas e florezinhas de marzipão criadas pelas mãos de um
mestre confeiteiro. Nem gim nem café nem vergonha nem remorso, nada havia
conseguido abrir uma abertura naquela fachada vitrificada. Era como se Janice
tivesse dentro de si uma fonte perene de vida, como se se levantasse todas as
manhãs rejuvenescida no poço da eternidade, nem um dia mais velha, nem um grama
mais gorda e ainda sedenta do mundo. Para minha infelicidade, não éramos gémeas
idênticas. Uma vez, no pátio da escola, entreouvi alguém se referir a mim como
um Bambi de pernas de pau e, embora Umberto tivesse rido e dito que aquilo era
um elogio, não foi o que me pareceu. Mesmo depois de ultrapassar a idade em que
tinha sido mais desajeitada, eu sabia que, perto de Janice, continuava
parecendo magrela, desengonçada e anémica; onde quer que fossemos ou o que quer
que fizéssemos, ela era tão morena e efusiva quanto eu era pálida e reservada. Sempre
que entravamos juntas numa sala, todos os reflectores viravam-se imediatamente
para ela e, mesmo estando bem a seu lado, eu era apenas mais uma pessoa na
plateia. Com o tempo, entretanto, fiquei à vontade no meu papel. Nunca
precisava de me preocupar com a conclusão das minhas falas, porque Janice
concluía por mim. E, nas raras ocasiões em que alguém perguntava sobre as minhas
esperanças e meus sonhos, em geral, quando eu tomava uma chávena de chá com um
dos vizinhos da tia Rose, Janice me puxava para o piano, que tentava tocar
enquanto eu virava as páginas da partitura para ela. Mesmo agora, aos 25 anos,
eu ainda me agitava e acabava envergonhada nas conversas com estranhos,
torcendo desesperadamente para ser interrompida antes de ter que combinar um verbo
com um objecto.
Sepultámos
a tia Rose debaixo de uma chuva forte e o cemitério parecia quase tão imundo quanto
eu me sentia por dentro. Parada junto ao seu túmulo, senti as gotas pesadas de água
caírem de meu cabelo e se misturarem com as lágrimas que me escorriam pelas
faces; os lenços de papel que eu levara de casa há muito tempo que se tinham transformado
numa pasta nos meus bolsos. Apesar de ter chorado a noite inteira, nem de longe
eu estava preparada para a triste sensação de fim que experimentei quando o
caixão foi para a terra, meio de lado. Um caixão tão grande para a estrutura
longa e esguia de tia Rose!... De repente me arrependi de não ter pedido para
ver o corpo, mesmo que não fizesse diferença para ela. Ou será que faria?
Talvez ela estivesse nos observando de algum lugar muito distante, querendo
poder dizer-nos que tinha chegado em segurança. Foi uma ideia consoladora, uma
bem-vinda distracção da realidade, e desejei poder acreditar nela. No fim do
enterro, a única pessoa que não parecia um roedor afogado era Janice, que usava
botas de plástico com saltos de 10 centímetros e um chapéu preto que expressava
tudo, menos luto. Em contraste, eu estava usando o que um dia Umberto havia
rotulado de meu traje de freira; se as botas e o decote de Janice diziam venha, meus sapatos pesadões
e o vestido abotoado até o pescoço com certeza diziam não apareça. Algumas pessoas apareceram junto à
sepultura, mas somente o sr. Gallagher, o advogado da família, ficou para
conversar. Nem Janice nem eu jamais o tínhamos encontrado, mas a tia Rose falara
dele com tanta frequência e tamanho carinho que o homem estava fadado a ser uma
decepção». In Anne Fortier, Julieta, Editorial Planeta, ISBN 978-989-657-127-6,
Sextante, 2010, ISBN 978-859-929-691-2.
Cortesia de
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