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Estrada
de Roma para Pescara. Itália. 1453
«(…)
Ele ouviu de imediato a onda de riso na voz dela, e não pôde deixar de ficar encantado
com aquele forte sentido de independência. Nós somos importantes, insistiu ele.
Nós, homens, mandamos no mundo, e tu devias mostrar-me mais respeito. Mas tu não
passas de um mero criado, arreliou ela. E tu não passas..., do quê? Contrapôs ele.
Uma escrava árabe? Uma erudita? Uma herege? Uma criada? Parece que ninguém sabe
assim muito bem quem tu és. Um animal à guisa do licorne, que se diz ser muito estranho
e assombroso mas que, na verdade, raramente se vê e, provavelmente, não serve
para nada. Oh, não sei bem, disse ela, muito à vontade. Fui educada pela minha belíssima
mãe de pele escura numa terra estranha para ter sempre a certeza de quem sou, mesmo
que mais ninguém o saiba. Um licorne, deveras, disse ele. Ela sorriu. Talvez. Certamente
que tens o ar de uma jovem senhora de si. Não é nada típico de uma donzela. Mas
é evidente que me pergunto o que nos irá acontecer, às duas, admitiu ela com ar
mais sério. Temos de encontrar o filho do padrinho de Isolde, o conde Ladislau,
e depois temos de o convencer a mandar o irmão dela devolver-lhe o castelo e as
terras. E se ele se recusar a ajudar-nos? O que faremos então? Como é que ela voltará
para casa? Sinceramente, se ela está ou não enamorada de Luca é o que menos nos
preocupa neste momento. A frente deles, Isolde lançou a cabeça para trás e riu-se
alto de qualquer coisa que Luca lhe disse ao ouvido.
Pois,
ela parece preocupadíssima, observou Freize. Estamos felizes, inshallah,
disse ela. Isolde tem a mente desanuviada como não teve durante meses, desde a morte
do pai. Se, como pensa o teu papa, o mundo vai acabar, mais vale sermos felizes
hoje, e não nos ralarmos com o futuro. O quinto membro do grupo, o irmão Peter,
chegou-se a eles com a sua montada. Vamos chegar à vila de Piccolo ao pôr do sol,
disse ele. O irmão Luca não devia emparelhar com aquela mulher. Dá um ar... O irmão
Peter hesitou, em busca da reprimenda apropriada. Normal? Sugeriu Ishraq com impertinência.
Feliz, anuiu Freize. Impróprio, corrigiu o irmão Peter. Quando muito, um ar informal,
como se ele não fosse um jovem prometido à igreja. O irmão virou-se para
Ishraq. A tua senhora devia viajar a teu lado, as duas de cabeça baixa e olhos
no chão como donzelas de mente pura, e só deviam falar uma com a outra, e raramente
e sem alarido. O irmão Luca devia viajar sozinho em oração, ou comigo em conversa
ponderada. Seja como for, eu tenho as nossas ordens. De imediato, Freize deu uma
palmada na própria testa. As ordens lacradas! Exclamou em tom irado. Sempre que
estamos a tratar da nossa vidinha e a caminho de algum lado, uma estalagem
acolhedora à nossa frente, talvez uns dias sem nada para fazer além de alimentar
os cavalos e de descansar, aparecem as ordens lacradas e vamos de escantilhão inquirir
sabe Deus o quê!
A nossa
é uma missão inquisitiva, disse o irmão Peter em voz baixa. Claro que temos
ordens lacradas para eu abrir e ler em determinadas alturas. Claro que temos de
ir inquirir. O próprio fulcro desta viagem não é, pense certa gente o que
pensar, visitar estalagens acolhedoras, conhecer mulheres; mas, sim, descobrir
sinais de que é chegado o fim dos tempos, o fim do mundo. E eu tenho de abrir essas
ordens ao ocaso deste dia, e descobrir aonde iremos a seguir e o que vamos
inspeccionar. Freize levou dois dedos à boca e soltou um assobio estridente. De
imediato, os dois cavalos dianteiros estacaram, obedientes a esse sinal. Luca e
Isolde viraram e arrepiaram caminho até onde os outros estavam parados à sombra
de uns pinheiros frondosos. O aroma a resina era potente como perfume no ar
cálido da tarde. Os cascos dos cavalos pisavam o restolho e as sombras alongavam-se no chão de areia pálida. Novas
ordens, disse Freize a Luca, seu amo, enquanto apontava com a cabeça para o irmão
Peter, o qual tirava um manuscrito de cor creme, solenemente lacrado com cera carmesim
e fitas, do bolso interior do casaco. Freize virou-se para o irmão Peter e perguntou,
curioso: quantas mais é que tem aí guardadas?» In Philippa Gregory, Filhas da
Tempestade, 2013, Topseller, 20/20 Edotora, 2015, ISBN 978-989-849-173-2.
Cortesia de
Topseller/20/20E/JDACT