domingo, 8 de janeiro de 2017

Santarém Medieval. Maria Ângela Beirante. «… prova de modo indisputável que foi a alcáçova velha ou castelo mourisco, e não a vila, o ponto atacado. E conclui: os freires deviam saber onde era a propriedade que possuíam. e Sancho I o lugar por onde seu pai acometera o castelo»

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«(…) Em certa altura, o narrador relata: como não estávamos longe da cidade, como bons caminheiros, metemos por um atalho que fica entre o monte Iraz e uma fonte (em árabe denominada Atumarmal, por causa do amargo das suas águas), atravessando o vale, levando à frente Mem Ramires. que conhecia bem os caminhos e as saídas, indo eu na rectaguarda. Trata-se, evidentemente. do percurso por eles tomado e não do ponto da escalada de Mem Ramires que, adiantando-se, subiu com os seus por Alcúdia e corajosamente escalou a casa de um oleiro, junto das muralhas. Não é possível identificar o topónimo Alcúdia. Mas pela leitura de todo o texto é de crer que a escalada teve lugar num ponto mais íngreme do que a calçada de Atamarma e junto do alcácer
mourisco. Depois de Mem Ramires ter subido à muralha disse o rei: levemos auxílio aos companheiros; tomemos a direita, a ver se podemos subir por Alplan. E Gonçalo Gonçalves foi com os seus pela esquerda para ocupar a estrada que vem de Seserigo, para que os inimigos não ocupassem primeiro aquela porta de acesso, frustando assim o nosso trabalho (…) Nós que contávamos subir às muralhas por meio de escadas, entrámos pela porta da cidade, com muito maior segurança. Traduzindo o original latino ficamos a saber que o Alplan era a zona ocidental de acesso ao castelo aquela que, comparada com o precipício de todo o circuito, parecia plana (para a maioria dos linguistas, alplan é um híbrido do árabe al e do latim planum, originando os intermediários alpram e alprão, estando o primeiro bem documentado; mais modernamente, o segundo deu alporão que alguns erradamente fazem provir de Alcorão). Nesta zona ocidental, diz-nos o texto, teria o alcaide mouro Abzechri ou Abu Zakaria, que governou a cidade quase 34 anos, levantando muralhas, baluarte e torres, atulhando os antigos fossos até acima com terra transportada pelos prisioneiros cristãos (deste chefe Abu Zakaria nos diz Herculano que foi o último capitão ilustre dos muçulmanos da Balata e que, como governador de Xantarin, comandou muitas algaras em território cristão; a mais afortunada foi, talvez, a da Primavera de 1144 que o levou à região de Soure onde derrotou os Templários, tendo mesmo aprisionado grande parte deles que levou consigo para Santarém).
O outro topónimo que aparece no relato que vimos seguindo é Seserigo. Este era o nome do arrabalde, correspondente à Ribeira, à borda do Tejo onde vivia grande parte da população da Xantarin mourisca. e que comunicava com a Alcáçova pela íngreme calçada de Santiago. Alexandre Herculano. que historiou o acontecimento em passagem bem conhecida da sua História de Portugal, não fala de qualquer entrada pela Porta de Atamarma, apenas aludindo ao percurso pelo vale entre Monte Iraz e a Fonte de Tamarma, referido pelo relato da conquista. O historiador afirma, isso sim, e mais de uma vez, ter sido a porta do Castelo o ponto da entrada do rei. Todavia, na edição da História de Portugal, como que atraiçoando o espírito do autor, existe a figura da Porta de Atamarma, construção que se conservou até 1864, afastada boas centenas de metros do Castelo ou alcáçova mourisca. Herculano, ao provar a genuidade da fonte que utilizou, invoca dois docuntentos que nos mostram ter sido a alcáçova velha o ponto acometido naquela noite de 15 de Março de 1147. O primeiro é um extracto de uma doação de 1193, de Sancho I aos cavaleiros de Santiago: daquelas nossas casas em que foi erguida uma torre, pela qual o meu pai, rei Afonso, de feliz memória, entrou furtivamente em Santarém. O segundo documento é uma passagem dos artigos aduzidos pelos mesmos cavaleiros, no processo de separação do mestrado de Castela. Referindo a doação de D. Sancho I, afirmam: concedeu à dita ordem um fortim com torre e casas na alcáçova velha do castelo de Santarém. por cujo lugar o mesmo castelo foi recuperado aos sarracenos. Para Herculano, a comparação destes dois diplomas prova de modo indisputável que foi a alcáçova velha ou castelo mourisco, e não a vila, o ponto atacado. E conclui: os freires deviam saber onde era a propriedade que possuíam. e Sancho I o lugar por onde seu pai acometera o castelo.
E possível que sejam estas as mesmas casas que o comendador de Santiago ou de Uclés doa, em 1242, ao rei Sancho II e a todos os seus sucessores, em reconhecimento de  herdamentos e bens que a Ordem dele recebera. Situam-se na Alcáçova de Santarém e têm uma torre a que chamam Ladra, nome que parece coadunar-se com a entrada furtiva de Afonso Henriques no castelo. Não seriam, contudo, as únicas casas que os freires de Santiago possuíam na Alcáçova. porquanto, em 1281, regista-se como sua uma propriedade urbana situada neste recinto. De qualquer modo, postas estas considerações, parece fora de dúvida que a conquista de 15 de Março se exerceu sobre a Alcáçova. Fica por esclarecer, todavia, pelo menos com carácter apodíctico, a localização da Porta da Alcáçova, bem como o ponto exacto da escalada de Mem Ramires que ficaria não muito longe, à esquerda daquela entrada. O que não oferece dúvidas é a localização do caminho que vem de Seserigo, ocupado por Gonçalo Gonçalves: trata-se da calçada de Santiago que seria a única que da Alcáçova conduzia ao dito arrabalde». In Maria Ângela V. Rocha Beirante, Santarém Medieval, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (35813), 1ª edição em Português, Dezembro de 1980.

Cortesia da UNL/FCSH/JDACT