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Primavera
de 1453
«Ouço
um estrépito, sinto uma pancada na cabeça, e estou sentada, desorientada, no soalho
do meu quarto. com uma mão encostada a uma orelha ferida, a olhar em meu redor,
como uma tonta, e sem ver nada. A minha dama de companhia abre a porta e, ao ver-me,
aturdida, o meu genuflexório tombado, diz, num tom irritado: lady Margarida, ide
deitar-vos. Já passa muito da vossa hora de dormir. A Nossa Senhora não
valoriza as orações de meninas desobedientes. Não há qualquer mérito no exagero.
A vossa mãe deseja que vos levanteis de manhã cedo. Não podeis ficar acordada a
noite inteira, a rezar; é um disparate. Bate com a porta e ouço-a dizer às aias
que uma delas tem de entrar, de me meter na cama e de dormir ao meu lado para se
certificar de que eu não me levanto à meia-noite para mais uma sessão de orações.
Não gostam que eu siga as horas litúrgicas; interpõem-se entre mim e uma vida de
santidade, porque dizem que sou muito nova e que preciso de dormir. Atrevem-se a
sugerir que estou a exibir-me, fingindo a devoção, quando sei que Deus me
chamou e que é meu dever, meu dever superior, obedecer-Lhe.
Mas,
mesmo que eu fosse rezar a noite inteira, não conseguiria voltar a captar a visão
que foi tão nítida, apenas há alguns momentos; desapareceu. Por um instante, por
um instante sagrado, eu estava lá: era a Donzela de Orleães, a Santa Joana d'Arc,
a Santa Joana da França. Compreendi o que uma rapariga poderia fazer, o que uma
mulher poderia fazer. Depois arrastam-me de volta para a Terra, e repreendem-me
como se eu fosse uma rapariga comum, e estragam tudo. Maria, Nossa Senhora, guiai-me,
anjos, voltai para mim, sussurro, tentando voltar à praça, às multidões que assistem,
ao momento empolgante. Mas desapareceu tudo. Tenho de me arrastar até ao pilar da
cama para me pôr de pé. Sinto-me tonta por causa do jejum e das orações, e esfrego
o sítio do joelho onde dei uma pancada. Existe uma aspereza maravilhosa na pele,
baixo a mão e levanto a camisa de noite para ver os dois joelhos, e estão iguais:
ásperos e vermelhos. Joelhos de santa, louvado seja Deus, tenho joelhos de santa.
Rezei tanto, e em chãos tão duros, que a pele que cobre os meus joelhos
endureceu, tal como um calo no dedo de um arqueiro inglês. Ainda não tenho dez anos,
mas já tenho joelhos de santa. Isto tem de contar para alguma coisa, seja o que
for que a velha dama que é minha preceptora possa dizer à minha mãe acerca da
devoção excessiva e teatral. Tenho joelhos de santa. Esfolei a pele dos joelhos
por rezar incessantemente, este é o meu estigma: joelhos de santa. Deus permita
que eu consiga estar à altura do desafio e que também possa ter um final de santa.
Entro
na cama, como me foi ordenado que fizesse; uma vez que a obediência, mesmo para
as mulheres tontas e vulgares, é uma virtude. Posso ser filha de um homem que foi
um dos mais importantes comandantes da Inglaterra na França, um dos mais notáveis
da família Beaufort, e, assim, herdeiro do trono de Henrique VI da Inglaterra,
e ainda assim. tenho de obedecer à dama que é a minha preceptora e à minha mãe,
como se fosse uma qualquer rapariga comum. Ocupo uma posição elevada no reino, sou
prima do próprio rei, apesar de ser terrivelmente menosprezada em casa, onde tenho
de fazer o que ordena uma velha estúpida que adormece a meio da homilia do
padre e que come ameixas cristalizadas enquanto damos as graças, antes das refeições.
Considero-a uma cruz que tenho de carregar, e ofereço-a em sacrifício nas minhas
preces. Estas preces irão salvar a alma imortal dela, apesar do que ela
mereceria na realidade, porque, por acaso, as minhas preces são especialmente abençoadas.
Desde pequena, desde os cinco anos, soube que era uma criança especial aos olhos
de Deus. Durante anos considerei que se tratava de uma dádiva exclusiva, por vezes
sentia a presença de Deus perto de mim; outras, sentia a bênção da Nossa Senhora.
Depois, no ano passado, um dos soldados veteranos da França, suplicando para regressar
à sua paróquia, apareceu na porta da cozinha quando eu estava a escumar a nata,
e ouvi-o pedir à leiteira algo para comer, porque ele era um soldado que testemunhara
milagres: tinha visto a dama a quem chamam a Donzela de Orleães. Deixai-o
entrar!, ordenei. descendo apressadamente do meu banco. Está sujo, respondeu
ela. Não passa desse degrau. Ele aproximou-se da soleira da porta, a arrastar os
pés, pousando um fardo no chão. Se pudésseis dispensar-me um pouco de leite, menina,
lamuriou-se. E talvez uma côdea de pão para um pobre, um soldado do seu senhor e
do seu país... O que foi que haveis dito acerca da Donzela de Orleães?, interrompi.
E de milagres? A aia por trás de mim murmurou entre dentes e ergueu os olhos,
cortou-lhe uma côdea de pão escuro de centeio e serviu-lhe leite numa caneca
tosca de barro. Ele quase lha arrancou das mãos e bebeu-a de um trago. Queria mais.
Dizei-me, ordenei». In Philippa Gregory, A Rainha Vermelha, 2011, Civilização Editora, Porto,
2011, ISBN 978-972-263-013-9.
Cortesia de
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