terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Santarém Medieval. Maria Ângela Beirante. «… outra torre avia no castello de Santarem, em que outrossi estava mui gram tesouro de moeda e doutras cousas, em tamanha cantidade, que ante apontavam fortemente»

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O perímetro amuralhado
«(…) Em qualquer das hipóteses, está fora de dúvida a ideia de que a Alcácova constituía então uma unidade inteiramente autónoma no conjunto da povoação. No século XIII, porém, a povoação encontra-se amuralhada totalmente ou em grande parte. Pergunta-se: foram os reis portugueses que mandaram erguer estes muros ou já os herdaram dos governadores árabes? Inclino-me pela primeira hipótese. Outro problema que se põe é o da articulação da muralha da Alcáçova com a muralha da vila. Embora a leitura do relato da conquista de Santarém nos possa deixar entrever a possibilidade da construção de uma muralha rodeando todo o Alplan, penso que as muralhas erguidas por ordem do alcaide Abu Zakaria foram apenas um reforço da defesa da parte ocidental da Alcáçova que anteriormente teria ruído. Este desabamento ou fractura da muralha deixou vestígios na toponímia, pois existia aqui um lugar designado por muro quebrado (murum quebradum ou murum fractum, nos documentos mais antigos). Os cartórios do convento de Avis e de Santa Maria da Alcáçova guardam memórias desse facto.
Além deste problema da fractura que é atestada pela documentação, é provável que o último grande governador árabe de Santarém quisesse alargar o perímetro da Alcáçova pela necessidade de proteger junto de si os familiares dos oficiais e soldados do seu vitorioso exército, enriquecido nas algaras. Tal alargamento só podia ser feito em terrenos do Alplan. Deixando as conjecturas, vamos aos factos com suporte documental. Temos a certeza do muro quebrado, à distância de apenas oitenta anos da nova cintura amuralhada do último grande vizir ou caide muçulmano e da conquista astuciosa pelo primeiro rei português, e a poucas dezenas de anos dos cercos rigorosos a que os Almóadas submeteram os Cristãos refugiados no roqueiro castelo. A referência mais antiga que conheço vem no Obituário de Santa Maria da Alcáçova incluído no maço I do convento de Avis e diz respeito ao ano de 1226: Paio Joanes Pinhão deixa àquela igreja uma casa perto do muro quebrado. Depois desta, há cinco referências ainda no nresmo Obituário à muralha derrubada: duas sem data e três da primeira metade do século XIII (em 1231; em 1232; e em 1245). Sobre a muralha destruída são também esclarecedores os seguintes documentos do cartório da Alcáçova: o primeiro é de 1281 e informa-nos que Domingos Peres Cabaços, cónego e procurador do prior Pedro, emprazou uma casa junto do muro quebrado. O segundo é de 1363, e localiza uma casa da colegiada junto com o muro quebrado. Uma legenda que vem no verso deste documento, em letra, ao que parece, do século XVII regista: aforamento de huma casa em alcaçova sobre (?) a torre do Bufo. No ano seguinte, faz-se o emprazamento de hüas casas que a dicta egreia ha na dicta villa na Alcaceva. As quaes partem de hüa parte com Azinhagaa que vay per cima da porta da Alcaceva e com rua publica. Na capa deste último pergaminho há uma notícia, em letra que suponho do século XVII, do seguinte teor: aforamento de huas casas na Alcaceva na rua da torre do Bufo.
Várias inferências podemos tirar do cotejo destes documentos. A primeira diz respeito à importância da fractura da muralha que todas as obras de restauração não dissiparam da memória das gentes, pelo menos até ao século XlV, sendo de admitir que parte dessa antiga muralha se mantivesse de pé. A segunda inferência consiste na relacionação do muro quebrado com a falada Torre do Bufo, concluindo-se mesmo que esta torre e a muralha desabada se situavam nas proximidades da Porla da Alcáçova. De modo geral, todos os historiadores de Santarém nos lembram a existência da Torre do Bufo dentro da Alcáçova. identificando-a, por vezes, com aquela que Fernão Lopes constata servir de cofre do tesouro real: outra torre avia no castello de Santarem, em que outrossi estava mui gram tesouro de moeda e doutras cousas, em tamanha cantidade, que ante apontavam fortemente por nom cahir com o muito aver que em ella poinham». In Maria Ângela V. Rocha Beirante, Santarém Medieval, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (35813), 1ª edição em Português, Dezembro de 1980.

Cortesia da UNL/FCSH/JDACT