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Todas as manhãs, o doutor Augusto Mendes mandava-o entrar para o consultório,
pedia-lhe que tirasse o casaco, que se sentasse, e, enquanto ia desfiando a ligadura
como se fosse um novelo, perguntava-lhe se passara bem a noite, se dormira, se
os cobertores eram suficientes, se ainda tinha lenha, se não entrava água pelo
telhado, se sentira dores. Depois, retirava com extremo cuidado as compressas,
observava a ferida, avaliava o evoluir da cicatrização, limpava, voltava a
cobri-la de compressas, enrolava uma nova ligadura e dizia: tudo como deve ser.
Então, o Celestino vestia o casaco, devolvia o chapéu à cabeça e despedia-se
até à manhã seguinte. Passadas três semanas, no final da consulta, enquanto
lavava as mãos, o doutor Augusto Mendes disse: Celestino, o que havia para
fazer, mal ou bem. está feito. O que quer dizer que ainda não é desta que
morres, e que podes seguir a tua vida como bem ntenderes. Por cima do
lavatório, existia um pequeno espelho, e o doutor Augusto Mendes reparou que,
atrás de si, o Celestino tentava atar um lenço à cabeça, por forma a tapar o
buraco sem olho. Mas o lenço era demasiado pequeno e não havia maneira de conseguir
dar o nó. O doutor Augusto Mendes acabou de lavar as mãos, secou-as numa toalha
branca, esperou que o Celestino voltasse a guardar o lenço dentro do bolso e,
assim que se virou, perguntou-lhe: Celestino, és um homem religioso? Celestino
parecia não saber o que responder. O doutor Augusto Mendes insistiu: és temente
a Deus? Vais à missa aos domingos?
Celestino
disse que não, que tinha ido uma vez quando era miúdo, mais nada. Nem à missa,
nem à escola. E de futebol, gostas de futebol?, perguntou-lhe o doutor Augusto
Mendes. Celestino encolheu os ombros e abanou a cabeça, como se não fizesse a
mínima ideia do que fosse o futebol.
Então,
o doutor Augusto Mendes sentou-se ao seu lado, pegou numa caneta e num papel,
desenhou o rectângulo de jogo, posicionou os vinte e dois jogadores, e
explicou-lhe o que era o futebol. Depois, disse: tenho um terreno, perto daqui,
onde gostava de fazer um campo de futebol. É preciso arrancar as ervas, tirar
as pedras, talvez alisá-lo, colocar areia, fazer as balizas, as marcações. É trabalho
para uns bons meses. É o trabalho que te estou a oferecer. O doutor Augusto
Mendes aguardou pela resposta do Celestino, mas, como a resposta tardava em
chegar, continuou: em troca, pago-te uma boa jorna e podes ficar a viver na
casa onde agora estás, até teres dinheiro para comprar a tua, ou até te
decidires a ir embora. Celestino continuava sem esboçar a mínima reacção, de olho
posto no papel onde se encontrava desenhado o campo de futebol com os vinte e
dois jogadores. Peço-te só uma coisa,, prosseguiu o doutor Augusto Mendes, que
passes a ir, todos os domingos, à missa. Celestino ergueu a cabeça, olhou o
doutor Augusto Mendes e perguntou-lhe porque é que estava a fazer aquilo tudo
por ele. Porque desde pequeno que o meu sonho é ter um campo de futebol,
riu-se. E depois disse: mas ficas avisado: se um dia destes aparecer por aí a
Guarda à procura de um homem sem um olho, levo-os direitinhos a ti. O Celestino
anuiu com a cabeça e, quando se preparava para se levantar, o doutor Augusto
Mendes interrompeu-o: espera lá, que ainda não acabou a consulta. De dentro de
uma das gavetas da secretária tirou uma caixa de madeira. Era uma caixa
retangular, com um fecho pequenino e dourado. Abriu-a. No interior, sobre o forro
aveludado, embutida numa concavidade, repousava uma esfera de vidro. Ao lado da
esfera de vidro, havia ainda uma outra concavidade que se encontrava vazia. O
doutor Augusto Mendes aproximou-se do Celestino, puxou-lhe a pálpebra direita
para cima e introduziu a esfera de vidro na cavidade ocular. Tal como
suspeitara, assentava-lhe na perfeição: o tamanho, a forma, a cor. O Celestino
levantou-se e plantou-se, incrédulo, em frente do espelho. Vendo a simetria
devolvida ao rosto, esboçou um largo sorriso. Disse: oh, doutor, até parece que
já vejo melhor. É capaz, Celestino, é capaz, respondeu o doutor Augusto Mendes.
E,
enquanto o outro se mirava ao espelho, o ilustre médico descobria, naquele
homem vindo sabem Deus e o Diabo donde, talvez das margens do Guadiana pela
forma de falar, naquele desgraçado que não tinha onde cair morto e que talvez
por isso mesmo caíra ali, um inesperado reflexo de si próprio. É que, enquanto
Celestino se mirava ao espelho, de sorriso estampado no rosto, e dizia Oh,
doutor, até parece que já vejo melhor, não era porque, graças ao olho
postiço, tivesse passado a ver melhor, mas porque a imagem que o espelho lhe
devolvia se assemelhava à lembrança que tinha de si próprio. Era, por isso, uma
ilusão. Uma ilusão que tinha, por um lado, a capacidade de lhe restituir a
identidade mas, ao mesmo tempo, a capacidade de lha ocultar. Tanto assim era
que o doutor Augusto Mendes disse, meio a rir, meio a sério: Celestino, a
partir de agora, se vier aí a Guarda perguntar por um homem sem um olho, já lhes
posso dizer que não sei de quem se trata. E foi sobre essa ilusão que assentou
o resto da vida de Celestino. Quase quarenta anos depois, sentado no cadeirão
de verga, a fumar cachimbo, olhando as árvores que recortavam o céu como fantasmas,
o doutor Augusto Mendes repetia a resposta de Celestino: azares da vida». In
João Ricardo Pedro, O Teu Rosto Será o Último, Prémio Leya 2011, Leya, 2012,
ISBN 978-989-660-209-3.
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