sábado, 21 de janeiro de 2017

A morte do Inquisidor-Geral. António Borges Coelho. «As instalações são amplas, as paredes grossas e forradas de alcatifas, mas não abafam de todo o marulhar do povoléu do Rossio nem os gemidos dos cárceres»


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«1 de Janeiro de 1653. Francisco Castro está a morrer na sua câmara, deitado em leito de pau-santo armado com quatro cortinas e céu de damasco verde e branco. Assistem-no três médicos e duas dezenas de fâmulos. Está acamado e sangrado. Na câmara, um Ecce Homo e as imagens de S. Pedro Mártir e de Santa Catarina de Sena. Do guarda-roupa, constituído por centenas de peças, vestimentas multicores, camisas, meias de seda, ceroulas, roupões, carpas, sotainas com cauda e sem cauda, barretes, chapéus, escolheu para  última viagem, uma vestimenta roxa de chamalote de ouro guarnecida de passamanes de ouro com estola e manípulo. À volta do pescoço, a cadeia de oiro que sustém a cruz peitoral também de ouro: no dedo o anel grande de ouro dos pontificais com cinco pedras em cruz, uma no meio, branca, duas verdes e duas azuis. Por baixo da roupa, colada ao corpo, traz ainda uma cruz de ouro niquelada com poderes, concedidos pelo papa Gregório XV de tirar uma alma do purgatório todas as vezes que com ela se rezar a missa.
O Inquisidor-Geral está a morrer ao Rossio, nos aposentos em que vive, situados nos Paços do Santo Ofício (maldito) que Mateus Couto, arquitecto das inquisições deste reino, remodelara por mandado do Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Francisco Castro, bispo inquisidor-geral e do Conselho de Sua Majestade. As instalações são amplas, as paredes grossas e forradas de alcatifas, mas não abafam de todo o marulhar do povoléu do Rossio nem os gemidos dos cárceres. Na capela privativa inventariaram-se centenas de objectos: alfaias de ouro e prata dourada, toalhas, frontais, panos de damasco, luvas, albas, sobrepelizes, vestimentas da Índia, de Castela e de Holanda. Nos aposentos pessoais, além da câmara onde agoniza, dispõe de um lavatório e nele um cântaro de cobre para aquecer a água, uma bacia de latão com o seu jarro coberto para Sua Ilustríssima lavar as mãos pela manhã, uma bacia de latão para lavar os pés, uma bacia de barbear, um cuspidor de prata.
Os retábulos de Santa Cecília, de S. Jerónimo, de S. João, de novo o de S. Pedro Mártir, agora com o relato do martírio, e ainda o retrato de frei Fernando Cruz, sobrinho do moribundo, enfeitam as paredes da antecâmara. Os livros da livraria, dominada pelo retrato de S. Tomás, haveriam de render 645 820 réis. Na mobília, o bufete em que escrevo, o contador de pau-santo onde guarda 700 000 réis em ouro e mais 200 moedas antigas de ouro, afora os 800 000 que tinha o secretário Diogo Velho e os 375 000 de dinheiro secreto. Num caixão de pau-santo guarda papéis do Santo Ofício (maldito) que manda entregar sob dupla chave ao inquisidor-geral que lhe suceder. As instalações pessoais compreendiam ainda a cozinha, a copa, o tinelo ou refeitório dos criados com a mesa do pobre, e ainda as áreas reservadas aos hóspedes.
A dispensa e a cavalariça ficavam nos fundos. O inventário dá notícia de arrobas e arrobas de passas e figos, moios e moios de grãos-de-bico, de lentilhas, de feijões, de ervilhas, sete arrobas de bacalhau, onze arráteis de açúcar mascavado, três barris de biscoito, arrobas de velas e de cera. Não faltariam o trigo, a carne, o vinho. Na cavalariça ficavam os animais de tracção, entre eles um macho novo de 90 000 réis, uma liteira grande, uma liteira pequena, o coche e a carroça da água. Em viagem, a cavalo, de coche ou de liteira, os criados embalavam nos baús de caminho as comodidades do amo e as alfaias da capela. Nestas, a cruz de prata de altar, os castiçais de prata, a caixa de hóstias dourada, um abano com pau de prata, as vestimentas de tafetá de diferentes cores, uma capa de tafetá da Índia branca e roxa com franjas de ouro, o missal na sua bolsa de couro, o Evangelho de S. João, duas bolsas de veludo negro para as esmolas. A cama de caminho em damasco azul seguia em duas caixas. Noutras caixas e baús ia o resto do guarda-roupa, onde não faltava um estojo com as tesouras para a barba e um urinol de prata para o caminho». In António Borges Coelho, A morte do Inquisidor-Geral, Questionar a História, Editorial Caminho, colecção universitária, 2007, ISBN 978-972-211-888-0.

Cortesia da ECaminho/JDACT