sábado, 28 de janeiro de 2017

Recensão. Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535). António M. Costa. «Evangelhos em maneira que por sua mingoa e negligencia a dita Republica nem pouo desta uilla não receba detrimento nem perda alguma»

Cortesia de wikipedia

«(…) Segundo nos é dado a conhecer, o regimento eborense, transportado para a Covilhã pelo mercador Jorge Martins após o assentimento de Luís, compõe-se de uma vintena de documentos atestando os privilégios alcançados pelos mesteres de Évora durante um período situado entre os reinados de Duarte I e de João III. A maior parte dos diplomas corresponde a benefícios dispersos outorgados pela coroa das mais diversas naturezas, de que são exemplo os mais antigos, que datam das Cortes de Leiria-Santarém de 1434, relativamente à generalização a todos os mesteres do pronunciamento na câmara sobre a justa valia dos produtos a almotaçar e à reafirmação a todos os oficiais da cidade para assegurarem carniceiros em número suficiente para garantir carne em abastança para o povo, assim como almotacés para a distribuir equitativamente. Porém, outros documentos há mais estruturantes, segundo a autora, como é o caso daquele que data de 1 de Agosto de 1451, atestando uma reunião em que vinte e quatro mesteirais, em representação dos mesteres da cidade, constituíram um regimento para ordenar novos estatutos e eleger seis pelouros (por cada seis anos, em cada qual exerceriam um secretário e um tesoureiro) para administrar a bolsa que pagaria o serviço de escolta de prisioneiros e o de transporte de dinheiros régios. Mas, como encerram as disposições, aqueles procuradores não se limitavam a administrar a bolsa, estando igualmente investidos na função, institucionalmente (bem) mais importante, de representação em Cortes, fazendo ouvir a voz do povo em paralelo aos antigos procuradores concelhios, a presença dos procuradores do povo miúdo de Évora nas Cortes de Lisboa de 1439 leva Maria Ângela Beirante a sustentar que esta prerrogativa dos mesteirais eborenses remontaria, no mínimo, ao governo de Duarte I. Nesta esteira, outro diploma de suma importância, que cabe aqui destacar, será aquele que foi apresentado nas Cortes de Lisboa de 1459 pelo povo miúdo, através do qual os mesteirais obtêm de Afonso V o direito de estar na câmara em vereação com os oficiais do concelho, passando a intervir (permanentemente) no governo local. Contudo, como é dado a conhecer pelos demais diplomas, estas conquistas dos homens dos mesteres foram objecto de grande resistência por parte da oligarquia urbana, que nas Cortes de Évora de 1490, quando João II precisou do apoio dos procuradores das vilas e cidades para o casamento do príncipe herdeiro, conseguiu da coroa que os procuradores do povo deixassem de estar em vereação, situação que só será revertida completamente após alvará de João III, em 22 de Julho de 1529.
Ao abordar a implantação do regimento na Covilhã, em cuja câmara o instrumento foi recebido a 14 de Fevereiro de 1535, Maria Ângela Beirante detalha-nos o interessante acto formal da eleição dos Vinte e Quatro dos Mesteres na vila beirã, na presença do juiz de fora (em representação do infante) e após chamada por pregão. Para uma representação equitativa, a autora salientou como se dispôs que os profissionais dos ofícios fossem escolhidos em proporção aos mesteres da vila, resultando da eleição: quatro mercadores, dois paneiros, dois tecelões, dois tecelões, dois tintureiros e tosadores, um surrador, dois ferreiros e ferradores, um ourives, três almocreves, um moleiro, um pedreiro e um oleiro. Ficamos ainda a saber como os vinte e quatro eleitos, que juraram sobres os Evangelhos em maneira que por sua mingoa e negligencia a dita Republica nem pouo desta uilla não receba detrimento nem perda alguma, passaram a votar os dois procuradores que os representariam na vereação naquele ano, bem como os pares que lhes sucederiam nos cinco anos seguintes, note-se que se previa, para evitar vícios ou corrupções, a tiragem à sorte do pelouro que ia ser atribuído à dupla em exercício no início de cada ano. Embora só conheçamos registos de eleição até 1552, a autora mostra-nos como não tardou em manifestar-se a estrutural oposição da oligarquia urbana, dinâmica essa que, de resto, se perpetuaria durante muito tempo, o que Maria Ângela Beirante chega a atestar com recurso a documentação das Cortes de 1641.
Por último, somos levados por uma caracterização económico-social dos fundadores da instituição dos Vinte e Quatro da Covilhã. Analisando a lista dos mesteirais presentes na eleição inicial de 1535, bem como o número de representantes eleitos por sectores profissionais, a autora sustenta detalhadamente a preponderância do sector do têxtil, da produção à comercialização, salientando o importante papel que os cristãos-novos terão assumido nesta área, teria mesmo partido dos profissionais deste ramo, de acordo com a mesma interpretação, a solicitação do regimento ao infante Luís. Por oposição, Maria Ângela Beirante destaca pela fraca representatividade nos primeiros Vinte e Quatro a pouca expressão de alguns mesteres na vila, como sucedia ao nível dos couros e dos metais, assim como na alimentação, com estas necessidades a serem supridas pelos almocreves, cujo grupo apresentava até alguma dimensão. Na esteira da autora, certo é que a partir de 1535, e até pelo menos o terceiro quartel do século (aquando da grande perseguição inquisitorial), a Covilhã alcançou o seu auge na transformação e venda de produtos da área dos têxteis, tornando-se uma referência no contexto de toda a comarca e do próprio reino. Em jeito de conclusão, podemos afirmar com segurança que o livro Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), de Maria Ângela Beirante, veio fazer luz no quadro historiográfico nacional no que diz respeito à investigação sobre os mesteirais na Idade Média. Tomando por objecto as urbes de Évora e da Covilhã, aqui relacionadas pelo regimento dos Vinte e Quatro dos Mesteres, a autora traçou, gizou um estudo bastante completo, com abordagens de natureza económica, social e institucional em torno dos profissionais dos ofícios entre os finais da medievalidade e os alvores da Idade Moderna. Estruturado com clareza, o trabalho apresenta uma escrita simples ao nível do texto, tantas vezes acompanhado de quadros que sistematizam a informação tratada, facilitando assim assimilação da matéria pelo leitor. Para o público académico, em particular aquele que investiga nas áreas da história urbana, económica ou social, serão certamente bons pontos de partida as imensas notas de rodapé que sustentam o texto e que remetem para uma plêiade de fontes, boa parte delas de arquivos nacionais e municipais, para além de um vasto conjunto de estudos, portugueses e estrangeiros.
Em suma, através desta metódica investigação ficou claro como a afirmação dos mesteirais eborenses conduziu, no século XV, à obtenção de um amplo conjunto de privilégios políticos, garantidos juridicamente pela coroa, os quais seriam adoptados pelos homens dos ofícios da Covilhã, após o assentimento do infante Luís, no início do segundo quartel de Quinhentos, quando o protagonismo dos seus mesteres reclamava também uma maior intervenção institucional. Em boa medida pelo seu papel económico, como se demonstrou com todo o rigor, os mesteirais lograram impor-se, numa dinâmica que os opunha tendencialmente às oligarquias urbanas, conseguindo assim numa e noutra comunidade o almejado assento nas vereações municipais e, mais ainda, a representação do povo miúdo em Cortes. Por conhecer ficou, como concluiu a autora, por falta de fontes, a forma, decerto maleável, como se terá aplicado o regimento dos Vinte e Quatro eborense na vila beirã, tendo em conta as diferenças na organização dos trabalhos: enquanto na cidade alentejana os mesteirais eram essencialmente fabricantes, como os profissionais do sector do couro, na Covilhã o grosso dos homens dos ofícios poderia ser ou não corresponder a fabricantes, como era o caso dos mercadores e dos paneiros, não devendo por isso estar sujeitos às mesmas restrições lucrativas. Porém, com este estudo, para além dos contextos estudados, espera-se chamar à atenção da historiografia nacional para a importância dos homens das artes mecânicas, que, de acordo com a filosofia medieval, eram considerados como parte integrante dos pés que sustentavam a sociedade e que, como tal, carregavam uma missão importante na consecução do bem-comum». In António Martins Costa, Recensão: Maria Ângela Beirante. Ao serviço da República e do Bem Comum: os Vinte e Quatro dos Mesteres de Évora, paradigma dos Vinte e Quatro da Covilhã (1535), Lisboa, Centro de Estudos Históricos, 2014, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Centro de História da Sociedade e da Cultura, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, Julho-Dezembro 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT