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Tal como todos os estudantes de História da Arte, Francesca possuía conhecimentos
gerais sobre a vida de Caravaggio. A sua obra tinha sido ressuscitada em parte graças
aos esforços de Roberto Longhi, que, em 1941, escrevera que Caravaggio fora um dos
pintores menos conhecidos da arte italiana. O seu desaparecimento ocorrera com
uma rapidez extraordinária. Inicialmente, o realismo das suas obras havia atraído
imensos seguidores, os Caravaggisti, assim se designavam, mas os críticos
daquela época consideravam as suas pinturas toscas e triviais. Defendiam que ele
não compreendia a verdadeira essência da arte e da beleza, que as suas obras
não passavam de uma imitação básica da natureza. Em finais do século XVII, era considerado
um pintor menor e de fraca reputação. Os anos decorreram e poucos foram os conhecedores
de arte que repararam na sua obra. Um deles, o crítico do século XIX John
Ruskin, de origem britânica, expressara-se em tom de revolta, afirmando que Caravaggio
se alimentava de horror, de hediondez e da imundície do pecado. Quando Longhi organizou
a sua exposição das obras de Caravaggio em Milão, no ano de 1951, muitos dos visitantes,
entre os quais historiadores de arte, pouco ou nada sabiam sobre o artista.
Havia muito que as suas obras se achavam confinadas a salas secundárias e arquivos
de galerias e museus. Foi então, nos anos que se seguiram à exposição, num repente,
como que por milagre, que os estudos de Caravaggio desabrocharam, atingindo padrões
industriais. A sua ressurreição para o mundo da arte fez-se com rapidez, exactamente
ao inverso do seu desaparecimento três séculos antes. Actualmente, Francesca considerava
que quase todos os historiadores de arte interessados na época seiscentista incluíam
um artigo sobre Caravaggio nos seus escritos, e todos os museus ansiavam por
expor Caravaggio, ainda que a exposição constasse de apenas uma ou duas obras. Chamava
a isto a doença de Caravaggio. Por vezes, receava também ela ficar contagiada.
Os
pormenores de grande parte da vida do artista permaneciam envoltos em mistério.
Chegara a Roma no final do Verão de 1592, ou talvez no início do Outono. Teria então
vinte e um anos. Chegara a Roma vindo de Milão. É muito provável que tenha feito
a viagem a pé, na companhia de caminheiros, que andavam em grupos para se protegerem
dos assaltantes. Transpusera as antigas muralhas da cidade pela Porta del Popolo
e, daí, dirigira-se ao Campo Marzio, a zona de maior densidade populacional da cidade.
Era então, tal como o é hoje em dia, uma zona apinhada de gente, pejada de ruelas
serpenteantes e passagens obscuras, desembocando frequentemente numa piazza
soalheira. As ruas mais largas, a Via del Corso e a Via di Ripetta, eram calcetadas,
mas a maioria das outras não estavam pavimentadas, tornando-se poeirentas no Verão
e lamacentas no Inverno. A cada esquina, um pedinte, um mendigo, videntes, malabaristas,
menestréis, prostitutas, meninos da rua, peregrinos, postulantes e, como não podia
deixar de ser, padres com sotainas negras e a incessante cacofonia do vozear em
dezenas de dialectos e idiomas. Era uma cidade de odores, fétidos e pútridos, bacios
vazados todas as manhãs pelas janelas que davam para a rua, fruta e legumes empilhados
a apodrecer nos mercados, cães vadios em redor das bancas dos talhantes e peixeiros
esperando encontrar restos por entre sangue e moscas.
Giovanni
Baglione afirmara que Caravaggio havia partilhado a sua primeira residência em
Roma com outro pintor, conhecido por Lorenzo, o Siciliano, que tinha um atelier
repleto de obras grosseiras. Segundo um médico chamado Giulio Mancini, que também
conhecera Caravaggio, um tal Pandolfo Pucci, mestre da casa de um familiar do anterior
papa, arranjara-lhe um quarto. De acordo com Mancini, Pucci tratava-o mal, obrigava-o
a realizar tarefas desagradáveis e dava-lhe apenas vegetais a todas as refeições.
Como pagamento pelo aluguer das exíguas águas-furtadas e pela miserável pensão,
Caravaggio via-se obrigado a realizar cópias de imagens religiosas, do tipo de arte
que era vendida por uns míseros scudi nas bancas que ladeavam as ruas e
na Piazza Navona. A certa altura, no decorrer destes primeiros anos que passou em
Roma, um estalajadeiro chamado Tarquino disponibilizou-lhe um quarto. Como
forma de pagamento, Caravaggio pintou o retrato do estalajadeiro, obra cujo paradeiro
é actualmente desconhecido. Durante os três primeiros anos que passou em Roma, são-lhe
conhecidos dez domicílios diferentes. Fora extremamente pobre, conforme relata Mancini,
um verdadeiro maltrapilho. Vivera à margem do mundo artístico, vendendo as suas
obras nas ruas, ao lado de centenas de outros jovens artistas que haviam escolhido
Roma como destino para fazerem fortuna. Francesca estava fascinada com aquelas
breves descrições que emergiam sobre a vida de Caravaggio, como cenas de uma peça
de teatro a meia-luz. As descrições mais pormenorizadas e ricas, encontrou-as nos
volumosos antigos registos da Polícia. Por exemplo, encontrou o registo de um
inquérito sobre um incidente que alegadamente ocorrera certa terça-feira do mês
de Julho de 1597. Era notável, pois dava conta da primeira descrição física de Caravaggio».
In
Jonathan Harr, A Obra Prima Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa,
2006, ISBN 978-972-233-676-2.
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