jdact
Papéis.
1991-2003
O
presente da Befana
«Cara
Sandra.
Perguntaste-me,
durante o último agradável encontro contigo e com o teu marido, o que tenciono
fazer para promover Um Estranho Amor (tenho de me habituar a tratar o livro pelo
seu título definitivo). Fizeste a pergunta de maneira irónica, acompanhando-a
de um dos teus olhares vivos de divertimento. Naquele momento não tive coragem de
te responder, parecia-me que já fora bastante clara com o Sandro, ele dissera
que estava plenamente de acordo com as minhas decisões, esperava que não se voltasse
a falar no assunto, nem mesmo a brincar. Respondo-te agora por escrito, a escrita
anula-me as longas pausas, as incertezas, a transigência. Não tenciono fazer nada
em relação a Um Estranho Amor, nada que implique o compromisso público da minha
pessoa. Já fiz o suficiente por essa longa história: escrevi-a: se o livro valer
alguma coisa, isso deverá bastar. Não participarei em debates e conferências, se
me convidarem. Não irei receber prémios, se mos quiserem dar. Nunca promoverei
o livro, sobretudo na televisão, nem em Itália nem eventualmente no
estrangeiro. Só intervirei por escrito, mas procurarei limitar também isso ao mínimo
indispensável. Nesse aspecto, comprometi-me firmemente comigo mesma e com a minha
família. Espero não ser obrigada a mudar de ideias. Compreendo que isso pode
causar algumas dificuldades à editora. Tenho muito apreço pelo vosso trabalho, afeiçoei-me
imediatamente a vós, não quero causar-vos prejuízos. Se não estiverem dispostos
a aceitar as minhas condições, digam-no já, eu compreenderei. Não é de todo necessário
que eu publique este livro. É difícil para mim expor todos os motivos desta minha
decisão, como sabes. Quero apenas confidenciar-te que se trata de uma pequena aposta
comigo mesma, com as minhas convicções. Eu acredito que os livros não precisam
dos seus autores para nada, depois de escritos. Se tiverem alguma coisa para contar,
mais cedo ou mais tarde encontrarão leitores; se não, não. Existem muitos exemplos
disso. Gosto muito daqueles livros misteriosos, de tempos antigos e modernos,
que não têm um autor certo mas que tiveram e têm uma intensa vida própria. Parecem-me
uma espécie de prodígio nocturno, como quando, em pequena, esperava os presentes
da Befana, ia para a cama muito agitada, e de manhã acordava e lá estavam os
presentes, mas a Befana, ninguém a tinha visto. Os verdadeiros milagres são
aqueles que ninguém chegará a saber quem os fez, quer sejam os pequenos milagres
dos espíritos secretos da casa, ou os grandes milagres que nos deixam realmente
de boca aberta. Ficou-me este desejo infantil de maravilhas, pequenas ou grandes,
ainda acredito nelas. Por isso, cara Sandra, digo-te francamente: se Um Estranho
Amor, por si só, não tiver pernas para andar, paciência, quer dizer que tu e eu
nos enganámos: mas se tiver, as pernas levá-lo-ão até onde forem capazes de ir,
e só teremos de agradecer às leitoras e aos leitores a paciência com que as ajudaram
a caminhar. Afinal, não é verdade que as promoções ficam caras? Eu serei a autora
menos dispendiosa da editora. Até a minha presença vos pouparei. Um forte abraço.
Elena
Carta
de 21 de Setembro de 1991
In Elena
Ferrante, Escombros, 2003, Relógio d’Água Editores, 2016, ISBN
978-989-641-666-9.
Cortesia
de Relógio d’AguaE/JDACT