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«O
estúpido Adónis estava novamente a segui-la. Marielle reparou nele quando virou
no cruzamento que ficava perto de casa. Apertou com mais força o rolo de papéis
que transportava junto ao peito e estugou o passo, abrindo caminho por entre as
pessoas que enchiam a rua estreita. Há meses que não o via. Pensou que ele tivesse
desistido na Primavera anterior, quando lhe dera a entender que sabia que ele a
vigiava. Para ela, tratara-se de um jogo, enquanto durara. Divertira-se a fazê-lo
palmilhar Londres atrás de si, enquanto atendia às facetas mais mundanas da sua
vida. Quando a ocupavam actividades mais significativas, conseguira sempre furtar-se
à atenção dele. Olhou furtivamente por cima do ombro, para ver se ele também tinha
virado e sorriu perante o absurdo que era ele acreditar que ela poderia não o detectar.
Um homem com a aparência dele nunca passaria despercebido. Um agente que perseguia
espiões precisava de ser detentor de um aspecto desinteressante, não de uma presença
que impunha atenção. As actividades subtis pediam uma fisionomia média e não um
rosto que arrancasse suspiros às mulheres. De traços vincados e beleza máscula,
era um rosto que atraía os olhares apesar do seu ar severo, ou talvez por causa
dele. Ele não compreender que não se prestava minimamente àquele papel e que era
flagrante o que fazia levaram-na a apelidá-lo de Estúpido Adónis. Que
inconveniente ele escolher aquele dia para voltar a importuná-la. As pessoas com
quem devia encontrar-se não iam apreciar a presença dele, isso era certo. Precisava
de escapar àquela sombra antes de chegar ao seu destino. Mudando de rumo, virou
na rua seguinte e depois virou à direita. Parou diante de uma carroça puxada por
um cavalo que marchava pesadamente e acompanhou-a, para se misturar na multidão
e tornar menos visível. Avistando uma chapelaria, várias portas à frente, apressou-se
a entrar quando a carroça a alcançou. Colocou-se perto da janela, observando a rua
que acabara de deixar.
O Estúpido
Adónis acabou por surgir no seu campo de visão, avançando lentamente a cavalo. A
montada parou no cruzamento. Ocultando-se por detrás de uma touca que enfeitava
a montra, Marielle espreitou o homem em cima da sela. Ele perscrutava a rua com
o sobrolho carregado. Perplexo, passou a mão pelo cabelo curto e voltou-se para
trás para olhar para o outro extremo da rua. Os olhos cor de esmeralda voaram para
a direita, para a esquerda, para trás e para diante. Chegou mesmo a olhar para a
montra onde ela estava, mas com toda a certeza a touca e os painéis de vidro pequenos
e irregulares impediram-no de a ver. Por fim, deu meia-volta ao cavalo. Com ar
imponente, regressou pelo mesmo caminho. Ela reprimiu um risinho. Que homem tão
estúpido. Esperou que a cauda do cavalo desaparecesse e começou a contar, para dar
o tempo necessário até poder sair. Uma sensação de calor no ombro fê-la sobressaltar-se.
A dona da loja estava plantada atrás de si, com uma expressão tão severa como a
do Estúpido Adónis. Gostaria de experimentar a touca? Há bastante tempo que está
a admirá-la, disse. Olhos azul-claros fitavam com desconfiança o comprido e volumoso
xaile que, era certo, não raras vezes escondera mais do que uma mera touca. Baixando
os olhos, Marielle reparou que a seda estampada do xaile deixava entrever a parre
superior do rolo de papéis que agarrava contra o peito, conferindo-lhe um ar de
coisa roubada e escondida. Levou as mãos a uma das fitas da touca atrás da qual
se escondera. Tamanho luxo não seria para ela, mesmo se tivesse algum dinheiro de
lado. As suas poupanças destinavam-se a algo muito mais importante do que simples
toucas. Pareceu-me que talvez quisesse comprá-la, mas há pormenores que não me
agradam, agora que a vejo mais de perto.
Os
olhos da mulher semicerraram-se ao ouvir a voz dela. Ah, é francesa. Uma das
nossas convidadas. O que explica... Bom... A mulher passou os olhos pela
roupa de Marielle, parando na renda rasgada que debruava o decote do vestido e também
no estampado desbotado do xaile de Veneza, outrora glorioso, assim como na
volumosa saia que proclamava quão antiquado era o seu vestido. O olhar deteve-se
finalmente no borrão de tinta que marcava a mão desguarnecida de Marielle. Marielle
olhou a lojista com desdém. Oui, uma das convidadas, do seu país.
As minhas roupas podem ser antigas, madame, mas também o é o meu sangue e
é isso que importa, não é verdade? Por acaso, dedico-me à aquisição de um novo
guarda-roupa com fundos que foram trazidos recentemente do meu país. Julguei que
a sua loja me tivesse sido recomendada por uma amiga, a viscondessa Ambury, mas
parece-me que percebi mal. As suas peças, receio, não possuem a qualidade necessária
para granjear a preferência dela». In Madeline Hunter, O Triunfo da Amante,
2013, Edições ASA, 2016, ISBN 978-989-233-697-8.
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