segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O Triunfo da Amante. Madeline Hunter. «Os olhos da mulher semicerraram-se ao ouvir a voz dela. Ah, é francesa. Uma das nossas “convidadas”. O que explica... Bom...»

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«O estúpido Adónis estava novamente a segui-la. Marielle reparou nele quando virou no cruzamento que ficava perto de casa. Apertou com mais força o rolo de papéis que transportava junto ao peito e estugou o passo, abrindo caminho por entre as pessoas que enchiam a rua estreita. Há meses que não o via. Pensou que ele tivesse desistido na Primavera anterior, quando lhe dera a entender que sabia que ele a vigiava. Para ela, tratara-se de um jogo, enquanto durara. Divertira-se a fazê-lo palmilhar Londres atrás de si, enquanto atendia às facetas mais mundanas da sua vida. Quando a ocupavam actividades mais significativas, conseguira sempre furtar-se à atenção dele. Olhou furtivamente por cima do ombro, para ver se ele também tinha virado e sorriu perante o absurdo que era ele acreditar que ela poderia não o detectar. Um homem com a aparência dele nunca passaria despercebido. Um agente que perseguia espiões precisava de ser detentor de um aspecto desinteressante, não de uma presença que impunha atenção. As actividades subtis pediam uma fisionomia média e não um rosto que arrancasse suspiros às mulheres. De traços vincados e beleza máscula, era um rosto que atraía os olhares apesar do seu ar severo, ou talvez por causa dele. Ele não compreender que não se prestava minimamente àquele papel e que era flagrante o que fazia levaram-na a apelidá-lo de Estúpido Adónis. Que inconveniente ele escolher aquele dia para voltar a importuná-la. As pessoas com quem devia encontrar-se não iam apreciar a presença dele, isso era certo. Precisava de escapar àquela sombra antes de chegar ao seu destino. Mudando de rumo, virou na rua seguinte e depois virou à direita. Parou diante de uma carroça puxada por um cavalo que marchava pesadamente e acompanhou-a, para se misturar na multidão e tornar menos visível. Avistando uma chapelaria, várias portas à frente, apressou-se a entrar quando a carroça a alcançou. Colocou-se perto da janela, observando a rua que acabara de deixar.
O Estúpido Adónis acabou por surgir no seu campo de visão, avançando lentamente a cavalo. A montada parou no cruzamento. Ocultando-se por detrás de uma touca que enfeitava a montra, Marielle espreitou o homem em cima da sela. Ele perscrutava a rua com o sobrolho carregado. Perplexo, passou a mão pelo cabelo curto e voltou-se para trás para olhar para o outro extremo da rua. Os olhos cor de esmeralda voaram para a direita, para a esquerda, para trás e para diante. Chegou mesmo a olhar para a montra onde ela estava, mas com toda a certeza a touca e os painéis de vidro pequenos e irregulares impediram-no de a ver. Por fim, deu meia-volta ao cavalo. Com ar imponente, regressou pelo mesmo caminho. Ela reprimiu um risinho. Que homem tão estúpido. Esperou que a cauda do cavalo desaparecesse e começou a contar, para dar o tempo necessário até poder sair. Uma sensação de calor no ombro fê-la sobressaltar-se. A dona da loja estava plantada atrás de si, com uma expressão tão severa como a do Estúpido Adónis. Gostaria de experimentar a touca? Há bastante tempo que está a admirá-la, disse. Olhos azul-claros fitavam com desconfiança o comprido e volumoso xaile que, era certo, não raras vezes escondera mais do que uma mera touca. Baixando os olhos, Marielle reparou que a seda estampada do xaile deixava entrever a parre superior do rolo de papéis que agarrava contra o peito, conferindo-lhe um ar de coisa roubada e escondida. Levou as mãos a uma das fitas da touca atrás da qual se escondera. Tamanho luxo não seria para ela, mesmo se tivesse algum dinheiro de lado. As suas poupanças destinavam-se a algo muito mais importante do que simples toucas. Pareceu-me que talvez quisesse comprá-la, mas há pormenores que não me agradam, agora que a vejo mais de perto.
Os olhos da mulher semicerraram-se ao ouvir a voz dela. Ah, é francesa. Uma das nossas convidadas. O que explica... Bom... A mulher passou os olhos pela roupa de Marielle, parando na renda rasgada que debruava o decote do vestido e também no estampado desbotado do xaile de Veneza, outrora glorioso, assim como na volumosa saia que proclamava quão antiquado era o seu vestido. O olhar deteve-se finalmente no borrão de tinta que marcava a mão desguarnecida de Marielle. Marielle olhou a lojista com desdém. Oui, uma das convidadas, do seu país. As minhas roupas podem ser antigas, madame, mas também o é o meu sangue e é isso que importa, não é verdade? Por acaso, dedico-me à aquisição de um novo guarda-roupa com fundos que foram trazidos recentemente do meu país. Julguei que a sua loja me tivesse sido recomendada por uma amiga, a viscondessa Ambury, mas parece-me que percebi mal. As suas peças, receio, não possuem a qualidade necessária para granjear a preferência dela». In Madeline Hunter, O Triunfo da Amante, 2013, Edições ASA, 2016, ISBN 978-989-233-697-8.

Cortesia de EASA/JDACT