«(…) Jonathan virou os esquis de modo a deixá-los perpendiculares ao
declive e fincou os bastões na neve. Aguente firme, gritou com as mãos em
concha. Esperou um sinal em resposta, mas a mulher não o escutara por causa dos
uivos do vento. De cabeça baixa, prosseguia a sua subida. Desceu um pouco a
encosta dando passos de lado. Era acentuada e estreita, margeada de um lado por
um paredão de pedra e do outro por uma greta profunda. Bem lá em baixo,
encarapitada em uma encosta suave, via-se, de forma intermitente, a cidadezinha
de Arosa, no cantão suíço oriental de Graubünden, piscando sob a camada de
nuvens que se movia depressa. Sempre foi difícil assim?, perguntou Emma quando
ele chegou ao seu lado. Da última vez, você chegou ao topo antes de mim. A
última vez foi oito anos atrás. Estou ficando velha. É, 32. Um verdadeiro
dinossauro. Espere só até ter a minha idade, aí é que a derrocada vai ser para
valer. Ele pôs a mão dentro da mochila para pegar uma garrafa d’água e
estendeu-a para a mulher. Como se está sentindo? Semimorta, respondeu ela, curvando-se
por cima dos bastões. Hora de chamar os sherpas. Você errou de país.
Eles aqui têm gnomos: mais espertos, mas com metade da força. Estamos sozinhos.
Tem a certeza? Jonathan confirmou. Você está superaquecida, só isso. Tire o
gorro um instante e beba o máximo de água que conseguir. Sim, doutor. Agora
mesmo. Emma retirou o gorro de lã e bebeu avidamente da garrafa. Na sua mente,
Jonathan via uma imagem dela na mesma montanha, oito anos antes. Era a primeira
vez que escalavam juntos. Ele, o cirurgião recém-formado que acabara de voltar
do seu primeiro posto na África trabalhando para Médicos Sem Fronteiras;
ela, a decidida enfermeira inglesa que ele trouxera de volta como esposa. Antes
de começarem, Jonathan perguntara se estava acostumada a escalar. Um pouco, respondera. Nada sério. Logo depois,
arrasara-o na subida, demonstrando a habilidade de uma esquiadora experiente.
Assim é melhor, disse Emma, passando uma
das mãos pelos cabelos ruivos revoltos. Tem certeza? Desculpe, Emma falou,
sorrindo, mas os seus olhos cor de avelã estavam cheios de cansaço. Desculpe
por quê? Por não estar tão em forma quanto deveria. Por diminuir o nosso ritmo.
Por não ter escalado com você nesses últimos anos. Deixe de bobagem. Estou
feliz por você estar aqui, só isso. Eu também, Emma falou, erguendo o rosto e
dando-lhe um beijo. Olhe, disse ele, mais sério, o negócio aqui está ficando
feio. Acho que talvez devêssemos voltar. Emma lhe estendeu a garrafa. Nem
pensar, rapaz. Eu já o derrotei uma vez nesta montanha. Pode prestar atenção
que vou derrotar de novo. Uma aposta com dinheiro? Uma coisa melhor que
dinheiro. Ah, é?, Jonathan tomou um gole d’água, pensando em como era bom
ouvi-la falar disparates de novo. Quanto tempo fazia? Seis meses? Um ano até,
desde que as dores de cabeça haviam surgido e Emma começado a desaparecer
dentro de quartos escuros por horas a fio. Ele não tinha certeza da data. Sabia
apenas que fora antes de Paris, e que Paris fora em Julho. Arregaçando a manga
do casaco, percorreu as funções de seu relógio de pulso Suunto. Altitude: 2.804
metros. Temperatura: –10º Celsius. Barómetro: 900 milibares (hPa) e em queda. Encarou os números,
sem acreditar totalmente nos próprios olhos. A pressão estava caindo
vertiginosamente. O que foi?, perguntou Emma. Jonathan enfiou a garrafa d’água
dentro da mochila. A tempestade vai piorar. Temos que deixar umas marcas.
Tem certeza de que não quer voltar? Emma sacudiu a cabeça. Dessa vez não havia
orgulho no seu gesto. Apenas decisão. Tudo bem, então, disse ele. Vá você na
frente. Eu sigo logo atrás. Me dê só um segundinho para arrumar as fixações.
Ajoelhado,
Jonathan viu uma camada de neve cair sobre as pontas de seus esquis. Em
segundos, eles ficaram cobertos. As pontas dos esquis começaram a tremer. Em
poucos instantes, Jonathan se esqueceu completamente das fixações. Com cuidado,
levantou-se. Acima de seu ombro, o Nordwand do Furga, um paredão de pedra e
gelo, erguia-se 300 metros até um pico dentado de calcário. Os ventos
constantes haviam empilhado neve fofa em volta do sopé, formando um banco de
neve alto e largo que parecia saturado e instável. Carregado, no jargão dos alpinistas. A garganta de Jonathan secou.
Ele era um montanhista experiente. Já escalara os Alpes, as Rochosas e até
mesmo o Himalaia durante uma temporada. Já tivera o seu quinhão de acidentes. Saíra
ileso, enquanto outros não haviam conseguido. Sabia quando se preocupar. Está
sentindo?, perguntou ele. Tudo se está a preparar para desmoronar. Você ouviu
alguma coisa? Não. Ainda não. Mas... Em algum lugar ao longe..., em algum lugar
acima deles..., um barulho distante de trovoada ecoou pelos cumes. A montanha
estremeceu. Ele pensou na neve acumulada no Furga. Dias de frio
inclemente a haviam congelado para transformá-la em uma gigantesca placa de
centenas de toneladas. Não era uma trovoada que estavam ouvindo, mas o barulho
da placa rachando e soltando-se da neve mais antiga e mais esfarelada que havia
em baixo». In Christopher Reich, A Farsa, tradução de Fernanda
Abreu, Editora Arqueiro, S. Paulo, 2008, ISBN 978-858-041-013-6.
Cortesia
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